O mês do ácido, do doce e do grito

Um grito seco que percorre nossas gargantas.

Começo com BR Trans, a real trajetória de um ator criador que entende seu papel social como artista brasileiro, que encara de frente aspectos dificultosos de serem abordados na atualidade, afinal, tratar sobre a transfobia está virando matéria para os fortes num país onde o conceito de família passa a ser questionado. Silvero Pereira é responsável por uma jornada que envolve a longa estrada entre Porto Alegre e Fortaleza, para traçar o ácido destino que pessoas transexuais, travestis e homossexuais vivem – ou deixam de viver – no país onde o ódio ainda se faz frequente dentro de nossas casas e, sobretudo, nas ruas, o local onde o crime abate a vítima que passa a fazer parte do conceito urbano. A genialidade da aliança do ator de Fortaleza com a diretora Jezebel De Carli, de Porto Alegre, está na nuance que os mesmos dão para o que olhamos com olhar de desculpa, de medo, ou ainda, de nojo, pela realidade que se aponta na sociedade atual, as pessoas transgêneras tem ganhado cada vez mais visibilidade e ainda lutam bravamente pelo seu reconhecimento de existência. Acredito que a pauta mais frequente e que provoca o espectador a se movimentar da cadeira é em todo o relato que Gisele Almodóvar – criação/alter-ego de Silvero – traz ao revelar histórias que conheceu em seu passeio pelo Brasil, esse TRANS faz parte de um conceito de trânsito que devemos reconhecer como existente, que no caso do espetáculo, permeia entre o trânsito da identidade do corpo e da identidade que escolhemos nos tornar, com isso, questões que parecem simples como utilizar um banheiro de escola, passam a ser grandes horrores na vida de um jovem transexual, ou ainda, o destino cruel das ruas para @s travestis e transexuais que por não encontrarem um espaço de reconhecimento profissional acabam se entregando à prostituição. Há beleza, carinho e desejos realizados por esse caminho também, no entanto, ainda são os becos, as estradas esquecidas, avenidas e rodovias que abandonam os corpos das vítimas de transfobia, porque o prazer pago não basta, há um gosto ácido que nunca parece ser sanado. Esse abacaxi espinhoso de nossa sociedade ingrata e desumana com as pessoas trans, Silvero descasca com a maestria de um artista social, que provoca e interfere no pensamento do cidadão brasileiro. Como ele mesmo diz ao final do espetáculo, “Não esperamos mudar a sociedade com este espetáculo”, mas certamente, cada um que saiu do Espaço Cênica do Sesc Pompeia, saiu com o gosto dessa fruta doce e amarga que guardamos dentro de si. Trabalhos como o de Silvero provam que o teatro do presente se faz gritantemente necessário. Já assisti duas vezes esse belíssimo trabalho, assim como Uma Flor de Dama, outro trabalho onde vemos a pessoa transexual como humana, igual e sofredora de dores iguais e tão importantes como qualquer outra. Recomendo fortemente que assista e viva as palavras e imagens deste trabalho. Silvero convoca aos que não conseguiram ingressos à irem e tentar, pois sempre rolam desistências.

Deveríamos olhar demoradamente para nós próprios
antes de pensarmos em julgar os outros.
Molière

Zabobrim é o palhaço que conheço desde clássicos como WWW para Freedom e A Julieta e o Romeu, ambas, produções do Barracão Teatro, grupo que tem sede em Barão Geraldo/Campinas – SP desde 1998 e dedica sua pesquisa para a linguagem da máscara, do palhaço, da Commedia dell’Arte e da improvisação. Em Zabobrim, o Rei Vagabundo, as linguagens do palhaço e das máscaras da Commedia dell’Arte encontram no circo-teatro a fusão para a criação de um espetáculo que borda sonhos do palhaço vagabundo com a realidade dura e faminta de quem mora nas ruas, o que é pretexto para todo tipo de intervenções e quiproquós. Há espaço para uma crítica aos “novos ricos” de nosso de-cadente painel brasileiro, que encontram no uso do poder a justificativa ideal para oprimirem o mais inferior dos seres. Zabobrim, que nos é apresentado como um pobre vagabundo, encontra um candeeiro mágico e nele está gênia e palhaça Mafalda, que lhe dá três desejos, depois de perder dois deles, decide que quer ser Rei. Mas a ascensão tem um custo, desde as surpresas de quem tem o gostinho adocicado pelo poder e pelo luxo às mazelas que um governante enfrenta, como as crises de governo, as interferências dos conselheiros e as invasões imprevistas ao reino. O papel desse rei é um paralelo à popularidade que damos aos nossos governantes, nos diálogos que Zabobrim estabelece com a plateia, fica claro que a empatia se conquista pela ação, no entanto, muitas vezes nos surpreendemos com o olhar de reprovação que um governante pode ali ter com sua exposição, afinal, a voz do povo é a voz de Deus. Pobre vagabundo esse que, por acreditar na força da voz de seus cidadãos, se vê vítima do sistema e acaba se tornando autoritário como se espera de figuras com seu gabarito. “Esse é o Rei que eu conheço” é a fala de um de seus três conselheiros, os Changeman coloridos que Zabobrim vê com o distanciamento de um inocente.

O paralelo com as máscaras é formidável, pois assistimos os papéis sociais que cada uma delas tem ali a cumprir na relação com o vagabundo e em seguida com o rei. Patrões, subordinados e o capitão são exemplos dessas máscaras que permeiam a vida do protagonista. Com um trabalho corpóreo-vocal precisos e de uma qualidade ímpar, Tiche Viana, diretora e grande pesquisadora da Commedia dell’Arte, preparou sua equipe de atores para contar uma história que se evidencia pelo gesto. A expressividade de cada uma das máscaras cria encontros formidáveis com o palhaço de Ésio Magalhães. Particularmente desconheço outros trabalhos que aliaram essas duas artes, no entanto, percebo uma originalidade e ousadia que comparo ao mestre Moliére, que não tinha medida em suas criações, teve a coragem de expor a sociedade tal qual como ela era, e que arrisco dizer, ainda é, conservadora, invejosa e portanto, cômica, carregada de falhas e possibilidades de fuga.

O espetáculo encerra neste final de semana no Sesc Santana, mas continua temporada de circulação em Campinas e arredores, confira ao final da publicação mais informações.

Ele – Ãrrã!
Ela – Oi?
Ele – Oi o quê?
Ela – O que você disse?
Ele – Ãrrã!
Ela – Oi?
Ele – Oi o quê???
Ela – O que você disse?
Ele – Eu disse ãrrã!

Fiz a brincadeira acima para pensar o significado desse ãrrã que fica impresso em nossa língua, que falamos muitas vezes para traduzir palavras indizíveis como um “sim”, ou, um “sei lá” de quem não sabe bem o que responder, enfim, uma palavra que falamos e geralmente não escrevemos. E assim o espetáculo de mesmo nome coloca em cena dois atores, Luciana Paes e Thiago Amaral, para transpor uma multidão de personagens, vistas sob óticas distantes ou bem próximas, navegamos por trechos de mundos de pessoas e possíveis personalidades que encaram seu sentido de existência. Num diálogo entre um motorista e a voz de seu gps, temos a extensão de relações que criamos sem nem ao menos medir suas consequências. “Você chegou ao seu destino” diz a voz, enquanto para nós espectadores isso é de uma comicidade absurda, o motorista e sequencialmente nós mesmos nos perguntamos que destino é esse que nos colocamos. Qual a verdade ideal que nutrimos em nossas mentes e que queremos acreditar absurdamente para existir? O nome dado a um cachorro pode não ser o que ele quer, mas quem escolhe isso? O que me faz pensar nos nossos registros de nascença, nos colocam lá aquele nome que teremos de carregar por toda a história e aceitar bravamente, mesmo que, em alguns casos carregue junto uma quantidade interminável de situações vexatórias. Em ãrrã há dois atores, uma grande passarela, um diálogo frequente de iluminação com as distâncias de um espaço vazio e em nossa mente de espectadores, uma verdadeira multidão. Tarefa que a direção e dramaturgia de Vinicius Calderoni cumpre com a parceria de sua genial dupla de atores, que carregam uma ironia natural e a certeza de que sua criação é plena, sem vícios ou excessos, mas livre no jogo onde não vemos transições ocorrerem, rimos absurdamente e nos emocionamos com o vazio, com a incerteza do que será, como uma ponte que leva o nada para lugar algum e justamente no percurso, ou em frames desse trajeto contemplamos vidas fervilhando.

A companhia Empório de Teatro Sortido foi criada por Rafael Gomes e Vinícius Calderoni, como um coletivo de autores-encenadores, sempre trazendo novos colaboradores para suas produções e relacionando a importância de uma produção contemporânea que entende os processos contínuos e coletivos, onde a troca de equipe de faz essencial. Hoje somos muitos, porque não nos dividirmos entre tantos mais? Abrindo espaço para o novo. Recordo de uma fala do encenador Antunes Filho na série O Teatro Segundo Antunes Filho, do Sesc TV, onde ele fala que precisa passar pra frente tudo o que que sabe para que deixe entrar coisas novas em sua cabeça.

Espero que quem leu minhas impressões aqui, corra para apreciar esses grandes espetáculos e deixe que uma parte deles fique dentro, gerando perguntas, incômodos, formando palavras. Nosso grito enquanto espectadores precisa se manter ativo de alguma maneira.

Até o mês que vem!

 

Serviço: 

ãrrã
Onde:
Sesc Belenzinho  (Até 11/10)
Rua Pe. Adelino, 1000. Telefone: 2076-9700
Quanto: R$ 6 a R$ 20 / 80 lugares. Possui acesso para deficiente.
Quando: Quinta a Sábado: 21:30h / Domingo: 18:30h
Classificação etária: 12 anos / Duração: 60 minutos

BR Trans
Onde: 
Sesc Pompeia – Espaço Cênico  (Até 18/10)
Rua Clélia, 93. Telefone: 3871-7700
Quanto: R$ 7,50 a R$ 25 / 50 lugares. Possui acesso para deficiente.
Quando: Quinta a Sábado: 21h / Domingo: 19h
Classificação etária: 16 anos / Duração: 70 minutos
*Ingressos Esgotados! No entanto, o ator Silvero Pereira convida à todxs que tentem, sempre cabe mais um. 

Zabobrim, o Rei Vagabundo
Onde: 
Sesc Santana  (Até 04/10)
Avenida Luiz Dumont Villares, 579. Telefone: 2971-8700
Quanto: R$ 9 a R$ 30 / 334 lugares. Possui acesso para deficiente
Quando: Sexta e Sábado: 21h / Domingo: 18h
Classificação etária: 12 anos / Duração: 90 minutos
Temporada em Campinas/SP:
09/10 – Sesc Campinas
10 e 11/10 – Sala dos Toninhos/Estação Cultura
23/10 – Casa de Cultura Casarão/Barão Geraldo
27, 28 e 29/10 – Barracão Teatro
Horários e ingressos: http://www.barracaoteatro.com.br/

 

IMPERDÍVEIS DE OUTUBRO/2015:

Hysterica Passio – Teatro Kaus
Espaço Parlapatões
Texto inédito no Brasil, o espetáculo da dramaturga espanhola Angélica Liddell, conta a história de Hipólito, que aos 12 anos resolve se vingar dos pais pelos maus tratos por ele sofridos. Montagem do Teatro Kaus, tem direção de Reginaldo Nascimento e tradução de Aimar Labaki.
Estreia em 17/10

Já nascemos mortos – Coletivo Sankofa
Centro Cultural da Penha, Teatros Distritais da Prefeitura e CEU’s
O espetáculo parte da hipótese real de que homossexuais já nascem com sua sentença de morte anunciada, simplesmente por serem o que são. O Coletivo Sankofa ganhou o apoio do grupo “Mães pela Igualdade”, que reúne mães de várias partes do Brasil que lutam contra a discriminação, violência e homofobia.
Estreia em 08/10 no Centro Cultural da Penha

Não te abandono mais, morro contigo – Cia. Carne Agonizante
Kasulo – Espaço de Cultura e Arte
‘Não te abandono mais, morro contigo’ apresenta dois amantes cansados e desiludidos pelo fim de uma paixão que se diluiu por conta da inevitável ação do tempo.
Estreia em 15/10

 

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Rafael Carvalho
Rafael Carvalho é ator, diretor, dramaturgo e arte-educador. Formado pela Universidade Federal de Ouro Preto nas habilitações de Licenciatura e Bacharelado em Direção Teatral. Integrou a 1ª Turma do Núcleo de Dramaturgia Sesi-SP/British Council. Autor das peças: "desFOCO" – publicado pela Editora Sesi-SP; "Ceci n'est pas une pipe {Este não É um cachimbo}" – com o grupo Transitório 35; "[A Cidade do Entre]" – com o Coletivo Onírico de Teatro (Campinas/SP); entre outras. Com o monólogo "MCNA - Meu Corpo Noite Adentro", foi premiado nas áreas de interpretação e dramaturgia. Atualmente é professor no Curso Profissional de Ator do Teatro Escola Macunaíma (São Paulo) e escreve para a coluna "Recortes de Cena" do site Ator Criador.

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