O Recorte Ideal

RECORTE DE CENA | ATOR CRIADOR

Às vezes é difícil encontrar o recorte ideal, onde pareça possível realizar uma colagem das experiências vividas e ainda assim preservar sua particularidade enquanto obra artística. Pode parecer uma frase confusa apenas para começar este relato, mas ando buscando mais o olhar de um espectador multifacetado, aquele que não perde nada, mas que em tudo busca sentido, mesmo que se tratando de uma lógica inversa, ou irreal. Não seria este o papel do espectador? Abrir-se como uma grande mala pré-enchida e propensa a resignificar uma viagem que se inicia ali após o 3º sinal? São dúvidas que cada vez mais me cutucam na cadeira de espectador, que algumas vezes é cadeia, noutras é gaiola aberta. Assim, se é preciso estabelecer um meio fio para a escrita venho pelo local desta gaiola aberta, que traduzo como a sala de espetáculos – fechada aparentemente – mas extensa em metáforas e viagens de sinapses quando um espetáculo começa.

Galileu Galilei, que encerrou uma feliz temporada no TUCA em agosto, despertou o sentido de compromisso que ainda nos impomos enquanto cidadãos, que é avançar tecnologicamente sem a prisão da ignorância ou de dogmas impostos. Galileu, o físico, nos ensinou em livros de ciências a importância da evolução, da descoberta, da coragem em encarar a religião. Galileu, de Brecht, nos dá a mão e vemos sua essência natural, que é carregada de medo, prisão e inconformidade, sem nunca esquecer a função primordial do homem moderno, que é ser político e carregar sua vida com a razão, sem perder a lógica da dor. A direção de Cibele Forjaz e a adaptação feita com parte da equipe de atores, entre elas Denise Fraga, que empresta sua formidável graça televisiva a um sensato Galileu, ganha o histórico palco do TUCA – Teatro da Pontifícia Universidade Católica, para quebrar as caras e caretas de seus nobres visitantes. Com cerca de 2 horas de duração, vemos a trajetória deste homem que é mais moderno do que nunca e que leva consigo uma legião de admiradores e enganadores. Esta encenação me tocou fortemente, convocando à dialética proposta por Bertolt Brecht. Talvez pela primeira vez tenha vivido integralmente essa experiência onde o intérprete é veículo para uma nota histórica, onde ele também assume o papel de consciência artístico-política. Elenco formidável, que em boa parte, repete o sucesso de A Alma Boa de Setsuan – na montagem de Marco Antônio Braz em 2010 –, também de Brecht, mas que aqui tem uma grande diferença, pois Denise é uma protagonista mais leve, que prescinde muito mais do outro, num pêndulo constante, entre atores X plateia X técnicos X personagens X objetos de cena. Uma encenação viva como essa, que convoca o espectador a brincar e cantar com os atores cutuca na ferida das panelas batidas pela burguesia e assim, parte de seu nobre público se esvai em busca de sua pizza perfeita. Uma pena aos que saíram, talvez sua fatia de calabresa não tenha sido tão saborosa quanto a de quem ficou.

Otelo, a tragédia do mouro de Veneza, que na verdade tem como sagaz protagonista o hilário e icônico Iago. Uma peça que, quando vista sob a ótica dele – Iago – passa a ganhar uma graça que dá outro tom à peça. Bárbara Heliodora, saudosa crítica e pesquisadora do teatro shakespeariano, falecida há poucos meses, defendia a tese de uma mistura dos gêneros comédia e tragédia em Otelo. Isso se dá, sobretudo, devido ao posicionamento que o personagem Iago assume quando conta aos espectadores sobre seu plano maléfico para derrubar o poder de seu mestre Otelo, o que ele faz com uma série de mentiras que planta ao longo do caminho para mostrar ao homem que não há limites para a confiança, que tudo é moldável, até mesmo uma inverdade ganha vida e o ser enganado, como é o caso da pobre Desdêmona, passa a encontrar dúvida em si mesma e se deixa levar pela fúria do marido, que a pressiona a confessar seu crime de traição. Como muitas das peças de Shakespeare, temos um enredo policial que é carregado de pistas que vão sendo deixadas ao longo do caminho, que na encenação de Debora Dubois ganha pela presença do ator Rafael Maia, intérprete de Iago, que oferece esse painel onde o plano do impossível se faz real. A peça que está em cartaz no Teatro Sérgio Cardoso, só aconteceu devido à iniciativa com o crowdfunding, o financiamento coletivo promovido por sites onde anônimos apoiam e promovem o montante esperado para a produção. Como um dos já beneficiados por esse tipo de arrecadação colaborativa, percebo o quanto ainda prescinde de um plano de divulgação em rede para sua promoção e assim alcançar o estimado valor para a realização do projeto. Esta é uma forma de não se sujeitar às restritas leis de incentivo e/ou prêmios espalhados no país.

Numa entrevista para o site Shakespeare Digital Brasil, Bárbara Heliodora foi questionada sobre o que precisa ser preservado para se montar Shakespeare no Brasil:

Acho que para fazer Shakespeare é simplesmente querer realmente fazer aquela peça, e não o nome de autor, é preciso saber o que ela diz, como evolui, e com todos os atores tendo uma noção muito clara do que dizem. Quando se estuda a obra realmente, ela pede o estilo do espetáculo, sem que seja necessário inventar enfeites e gracinhas. O texto embala o ator. Mas todos têm de saber claramente o que estão querendo fazer, que pode ter vários caminhos mas tem de contar a história, e contá-la de modo que ela chegue à plateia.
(Disponível em: http://migre.me/rqU30)

Quis abrir essa aba para argumentar brevemente que a montagem que assisti não está em desacordo com a obra original, mas pecou em elementos que poderiam receber melhor cuidado, como as músicas cantadas pelos atores, que se perde devido ao excesso de volume dos instrumentos, também percebo uma desarmonia na representação onde os atores, inclusive o protagonista, por vezes pareciam esquecer o texto, pequenos engasgos que criavam uma película de distância entre espectador e espetáculo. Também havia uma quebra de personagens ao saírem de cena, que não afetava a roupagem do espetáculo, mas chamavam uma atenção desnecessária para a ação seguinte. Comparando aos “enfeites e gracinhas” que Bárbara cita, coloco a exagerada inserção de palavrões na tradução, em certo momento pareciam desnecessários e perdiam força. A peça que vi, merece um foco no ator Rafael Maia, que brinca, dentro dos excessos, com seu clown e ajuda a provocar o espectador a amá-lo cada vez mais.

O embalo que o ator faz com o texto se faz de maneira deliciosa em A Máquina Tchékhov, em cartaz no Instituto Cultural Capobianco. Com dramaturgia do romeno Matei Visniec, um autor que se você ainda não ouviu falar não se preocupe, porque ele já está e provavelmente ficará um bom tempo permeando nossas salas de espetáculos. Digo isso pela liberdade com que ele brinca e fornece painéis (im)possíveis para seus personagens, ou ainda, emprestados de outros autores, como é o caso desta onde Tchékhov – que não sai desses Recortes de Cena há algum tempo – encontra seus personagens e com eles promove um passeio de estudo para conhecer suas virtudes, mesquinharias, desejos, paixões e segredos mais profundos. A direção de Clara Carvalho e Denise Weinberg nos transporta para um ambiente literalmente frio, com névoa de esbranquiçar as vistas, como se o que tivéssemos ali para ver fossem espectros de uma vida. Esta máquina composta por vidas ficcionais que só conhecemos em peças como As Três Irmãs, A Gaivota ou Tio Vânia, aqui ganham um frescor natural, sem esquecer da beleza visual dos figurinos de Chris Aizner e o difuso e poético desenho de luz de Wagner Pinto. A Máquina Tchékhov também pode ser avaliada como uma sagaz análise de acontecimentos no mundo deste autor russo tão influente para a dramaturgia desde o final do século XIX e que até hoje nos toca pela memória de seus personagens, na sensação de silêncio em que nos apegamos. Trata-se de uma obra onde vemos a produção teatral se desmembrar, mostrando suas mais belas vísceras.

A boa visita que tivemos em São Paulo no último mês foi de Avental Todo Sujo de Ovo, peça de Marcos Barbosa, no festival Palco Giratório 2015 no Sesc Belenzinho, sob a delicada versão do Grupo Ninho de Teatro. O festival que apresenta um panorama de produções brasileiras que circulam por várias cidades do país, trouxe dentro de sua mala de preciosidades este grupo da cidade do Crato (CE), que vem se estruturando a cada nova produção para fortalecer o pólo cultural de sua região. A versão que nos chega mostra a simples ação por trás das palavras, num cenário composto por um tapete de arroz, a Mãe colhe, rasga, cisca, joga e esconde memórias de um Filho que partiu ainda jovem. A dor dessa Mãe é intensificada pela dor de um Pai que ainda guarda o prazer de abrir a caixa de correios, em busca de notícias que nunca chegam. O equilíbrio se dá pela presença de uma Vizinha amiga que ali se coloca como companheira dessa dor e rememora os dias felizes na infância de seus filhos. Certamente, o encontro das atrizes Zizi Telécio e Joaquina Carlos logo na primeira cena ajudam, e muito, a transportar a morosidade do ser tão nordestino. E quando separo o ser do tão é porque há um caminho enorme entre essas figuras, muitas vezes nos referimos ao sertão como um local seco, sem vida, sem histórias e esquecemos que ali regam causos, florescem crenças, planta-se a saudade e o perdão. Essa tradução de sentidos é habilmente explorada pela palavra silenciosa de Marcos Barbosa, que reinsere o filho no contexto, mas agora como uma Mulher, sua real essência e que apenas por reaparecer já explica o motivo de sua fuga. O silêncio que a personagem nos apresenta fala muito, das dores que a pessoa transgênera vive e muitas vezes nos calamos.

E para dar continuidade aos Recortes de Cena, convido a conhecer algumas indicações imperdíveis para setembro que seguem logo após o serviço desta publicação.

Até a próxima!

 

Mais informações

Otelo
Teatro Sérgio Cardoso – Sala Paschoal Carlos Magno
Rua Rui Barbosa, 153, Bela Vista. Telefone: 3288-0136.
Ingresso: R$ 40 e R$ 20 (Meia)
Possui acesso para deficiente. 144 lugares.
Classificação etária: 12 anos
Duração: 120 minutos
Terça e Quarta: 20h
Até 09/09

A Máquina Tchékhov
Instituto Cultural Capobianco – Teatro da Memória
Rua Álvaro de Carvalho, 97, Centro. Telefone: 3237-1187
Ingresso: R$ 20 e R$ 10 (Meia)
50 lugares
Classificação etária: 12 anos
Duração: 90 minutos
Sábado 21h / Domingo: 19h
Até 25/10

Avental todo sujo de ovo – Grupo Ninho de Teatro (Crato – CE)
*Já encerrou temporada em São Paulo, mas continua no festival Sesc Palco Giratório 2015. Confira programação em: www.sesc.com.br/palcogiratorio

Galileu Galilei
*Já encerrou temporada.


Imperdíveis de setembro/2015:

BR-Trans – Com Silvero Pereira
Sesc Pompéia
Monólogo excepcional onde Silvero traça um mapa sobre o medo, a solidão e a morte da pessoa transgênera na sociedade brasileira.
Temporada de 25/09 a 18/10

Máquina Tadeusz Kantor
Sesc Consolação
Exposição, intervenções e performances com o multi-artista polonês, responsável pelo conceito de Teatro de Morte, onde o corpo da máquina é base para o corpo do artista cênico.
Até 14/11

 

Este slideshow necessita de JavaScript.

 

Rafael Carvalho
Rafael Carvalho é ator, diretor, dramaturgo e arte-educador. Formado pela Universidade Federal de Ouro Preto nas habilitações de Licenciatura e Bacharelado em Direção Teatral. Integrou a 1ª Turma do Núcleo de Dramaturgia Sesi-SP/British Council. Autor das peças: "desFOCO" – publicado pela Editora Sesi-SP; "Ceci n'est pas une pipe {Este não É um cachimbo}" – com o grupo Transitório 35; "[A Cidade do Entre]" – com o Coletivo Onírico de Teatro (Campinas/SP); entre outras. Com o monólogo "MCNA - Meu Corpo Noite Adentro", foi premiado nas áreas de interpretação e dramaturgia. Atualmente é professor no Curso Profissional de Ator do Teatro Escola Macunaíma (São Paulo) e escreve para a coluna "Recortes de Cena" do site Ator Criador.

Comente