E o público, onde fica?

Hysterica Passio, com direção de Reginaldo Nascimento, que está à frente do Teatro Kaus Cia Experimental desde 2001, traz ao Espaço dos Parlapatões o texto inédito no Brasil da autora espanhola Angélica Liddell. O espetáculo conta a história de Hipólito, que aos 12 anos resolve se vingar dos pais pelos maus tratos por ele sofridos. Na cena, está aprisionada sua mãe Thora e por vezes o pai Senderovich, personificado pelo ponto de vista do filho. A encenação está no rol dos que causam incômodo ao espectador mais disperso ou ausente, sua narrativa que por vezes passeia por um belo ambiente lírico, expõe feridas expostas de uma criança perante seus pais, que sofrem igualmente, no caso do pai, num silêncio profundo, e a mãe Thora (Amália Pereira), histérica e sedenta pelo toque no próprio sexo, por um orgasmo constante que a deixa com os olhos vibrantes, carregados de um amor, de uma fúria e de uma melancolia latentes. Toda essa profusão de sentimentos impulsiona a história desse filho que assiste do lado de fora sua obra magistral de vingança. Com a interpretação de Alessandro Hernandez, vemos uma nudez carregada de desenhos expressivos executados por seu corpo, oferecendo uma grande variedade de impulsos de energia em sua contação, que o tempo todo permeia entre o riso e o trágico. A nota 0 (zero) vai para o Espaço dos Parlapatões que insiste em deixar sua plateia num gelado do ar condicionado, provocando um desconforto óbvio em quem assiste.

O Filho, último espetáculo do Teatro da Vertigem, é outro trabalho que expõe a dor da criação e toda a herança que jamais sonhamos ter, que advém de uma personalidade, de coisas e entulhos que não queremos sentir, de fragmentos que abandonamos ao longo de uma trajetória familiar em que crescemos e deixamos nossos pais, mas que em algum momento retornarão para insistir no melhor modo de viver. Alexandre Dal Farra é o responsável por rever o texto original Carta ao Pai, de Franz Kafka, oferecendo uma construção dramatúrgica que cabe muito bem na boca do pai interpretado por Antonio Petrin; seu filho – o protagonista, Sergio Pardal e o neto, Rafael Lozano. Com uma segunda temporada já finalizada na Vila Itororó, o Teatro da Vertigem explorou um ambiente em desconstrução, carregado de itens cenográficos que pareciam compor com a arquitetura do espaço em queda da Vila Itororó. Como em espetáculos anteriores da companhia, havia um cuidado excepcional com o desenho de som e de luz no espaço, que percorriam os sentidos dos espectadores, transportando-os cada vez mais próximos do ambiente de uma “tradicional família”, com excessos e restos como qualquer outra. O que deixou – e muito – à desejar foi a disposição do público, espalhado por poltronas e ridículos e desconfortáveis puffs, que muitas vezes impediam a observação de diversas cenas, uma vez que o espaço era utilizado em 360º. Entendo uma questão contemporânea onde só vemos os fragmentos de tudo o que acontece, nada é 100% possível de ser observado, até compartilho desse pensamento em minhas criações, mas penso que o público merece uma atenção especial nesses detalhes, se o ideal para o espetáculo é que se tenha um número reduzido de espectadores, que isso seja feito. Acredito que a presença do público e sua recepção favorecem para a construção da linguagem desse tipo de trabalho.

Não te abandono mais, morro contigo, espetáculo da Cia Carne Agonizante em seus últimos dias de temporada, apresenta um casal de amantes desiludidos/diluídos pelo fim de uma paixão. É essa “separação” que os corpos dos intérpretes nos conta, em silêncio e pelo toque, por vezes coreografado, por vezes sensível, inesperado, e ainda, em estase, suspensos num plano indefinido. Diante da beleza dos intérpretes Rafael Carrion e Alex Merino e de sua fluidez no contato sobre uma cama de casal, está uma suspensão de sentimentos, um vazio sem tamanho. Os amantes, que parecem estar numa eterna despedida, se despem de suas roupas/cascas/máscaras ao longo dessa dança e é inevitável observar uma reação que se apresenta no público, nesse momento observei desconforto, uma vontade de fugir de algumas pessoas que estavam próximas, um medo de estar ali, reflexos que me transportaram para perguntas que extrapolavam o sentido do espetáculo: Qual o problema em assistir um corpo nú em cena? Por que se esconder de uma beleza que todos nós temos? A auto aceitação é tão impossível a ponto de não se deixar ver o outro? É óbvio que não cheguei a conclusões. E de volta ao des/encontro desse casal de amantes, pensei no excesso de toque, de afeto – no sentido do que afeta – e de nenhum olhar, os corpos que ali estavam eram mortos, já estavam separados um do outro desde o começo, no entanto a frequente procura pelo tato parecia não nos convencer que ali ainda havia algo, mas nada passava de um oco sem fim. O belo espetáculo conta com variação das duplas de intérpretes, mas acredito que não perde a sensibilidade artística de sua criação.

O Kasulo Espaço de Arte e Cultura, onde o espetáculo está em cartaz oferece um charmoso café e comidinhas em sua área de recepção, além de uma equipe sempre convidativa e aberta para a opinião de seus visitantes, no entanto, a plateia é de um descuido impressionante. Além do desconforto, não havia iluminação suficiente para que as pessoas se posicionassem na arquibancada. Mais um exemplo de falta de atenção com o espectador. Seria esta uma provocação? Um convite ao incômodo? Ou apenas uma falta de planejamento do espaço?

A Tempestade sem dúvida é uma das peças em que Shakespeare adota a postura de crença nos valores do homem, mesmo que eles tenham de ser expostos ao máximo de seu ridículo. A experiência de ver personagens desapropriados de seus artifícios mesquinhos e cada vez se tornando mais e mais transparentes diante dos olhos de seus pares é um deleite para o público. Com encenação primorosa de Gabriel Villela no confortável Teatro Tucarena, podemos conferir a obra desse diretor que tem como base fundamental um olhar cuidadoso para o barroco mineiro e, consequentemente, para toda a cultura que o estado de Minas Gerais guarda com memória de ferro em suas raízes, sejam em suas belíssimas cidades históricas, no patrimônio dos cânticos ou de suas receitas peculiares, o espetáculo traz um gosto de contação de histórias com a maior das qualidades que é EXERCITAR A IMAGINAÇÃO, informação essa muito bem colocada antes da realização, pela voz em off que pede à todxs que desliguem os celulares e abram suas mentes. A musicalidade e a lateralidade do espaço são harmoniosas com o público que está ali frente à arena de jogo, quase como um integrante daquela tragédia, que aos olhos de quem vê, parece uma verdadeira magia. Dentre interpretações impecáveis como a de Celso Frateschi como Próspero, Chico Carvalho como Ariel, Helio Cícero como Caliban, há destaques belíssimos como a presença clownesca de Dagoberto Feliz como Trínculo e Letícia Medella como Miranda, dotada de uma voz encantadora. São 90 minutos de surpresa e paixão viva pelo teatro.

Gabriel Villela já deu esse gostinho de amor às raízes fundamentais do teatro com memoráveis trabalhos de sua trajetória, destaco dois com o Grupo Galpão: Romeu e Julieta e A Rua da Amargura, ambos disponíveis na coleção de dvd’s do grupo, imperdíveis como A Tempestade que encerra na próxima semana.

Por fim, destaco Solos (Seuls), que passou por São Paulo na última semana deixando um gosto de ousadia e sensibilidade. Com autoria, interpretação e direção de Wadji Mouawad, o monólogo apresentou Harwan, um pesquisador acadêmico das artes cênicas que está num ambiente de transição entre um caminho que desconhece, mas que acredita ter total segurança. Impossível não se transportar para o ambiente daquele homem que, preso num quarto de hotel, espera respostas, reencontra passados, enfrenta a si mesmo, porém, nunca se vê no espelho. Ao final, entramos na mente deste homem e assim, nos últimos 30 minutos de espetáculo vemos onde ele está e porque não fala, porque não vê e tudo o que pode oferecer dali em diante é sua expressão mais antiga, a pintura abstrata, como a de uma criança que deseja sair de um casulo e partir para o vôo, muitas janelas se abriram a partir de então e metaforicamente, pela quantidade de cores e força com que eram impressas no espaço vivi uma experiência inconsciente, onde não há maior explicação além do que se vê.

Quem se sentir curioso a conhecer um pouco mais do trabalho, assista no link a seguir alguns extratos do espetáculo: https://vimeo.com/12232339

A pergunta que lanço como título desta publicação é um convite para que todos nós pensemos nosso lugar como espectadores, não apenas de espetáculos, mas de nossa crise política nacional; da reestruturação das escolas no estado de São Paulo; da destruição ambiental e patrimonial que acaba de ocorrer em Minas Gerais e que segue Rio Doce abaixo; de nossos colegas de trabalho; de nossos vizinhos de apartamento; de nossos desconhecidos que passam ao lado, o que quero dizer é que todos temos não apenas um, mas muitos locais que devemos reivindicar como cidadãos do mundo.

Nas palavras de Carlos Drummond de AndradeNada mais abstrato do que a comunidade, e nada mais concreto quando nos declaramos seus representantes”, sendo assim, que sejamos mais Salvador Dalí e menos piche de asfalto! EVOÉ!

 

Serviço:

Hysterica Passio
Onde:
Espaço dos Parlapatões.
Pça. Franklin Roosevelt, 158, República / Tel: (11)3258-4449.
Quando: Até 13/12. Sábado e Domingo: 20h
Quanto: R$ 40 / 100 lugares. Possui acesso para deficiente.
Classificação: 16 anos / Duração: 80 minutos

Não te abandono mais, morro contigo
Onde:
 Kasulo Espaço de Arte e Cultura
Rua Sousa Lima, 300, Barra Funda / Tel: (11)3666-7238
Quando: Até 15/11. Quinta a sábado: 21h / Domingo: 19h
Quanto: Grátis / Reservas pelo e-mail ciacarneagonizante@gmail.com
Classificação: 16 anos / 35 lugares / Duração: 45 minutos

A Tempestade
Onde:
Teatro Tucarena.
Bartira, esq. c/ R. Monte Alegre, Perdizes / Tel: (11)3670-8453
Quando: Até 22/11. Sexta-feira: 21h30 / Sábado: 21h / Domingo: 19h
Quanto:
R$ 50 a R$ 70 / 300 lugares / Possui acesso para deficiente
Classificação: 12 anos / Duração: 90 minutos

 

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Rafael Carvalho
Rafael Carvalho é ator, diretor, dramaturgo e arte-educador. Formado pela Universidade Federal de Ouro Preto nas habilitações de Licenciatura e Bacharelado em Direção Teatral. Integrou a 1ª Turma do Núcleo de Dramaturgia Sesi-SP/British Council. Autor das peças: "desFOCO" – publicado pela Editora Sesi-SP; "Ceci n'est pas une pipe {Este não É um cachimbo}" – com o grupo Transitório 35; "[A Cidade do Entre]" – com o Coletivo Onírico de Teatro (Campinas/SP); entre outras. Com o monólogo "MCNA - Meu Corpo Noite Adentro", foi premiado nas áreas de interpretação e dramaturgia. Atualmente é professor no Curso Profissional de Ator do Teatro Escola Macunaíma (São Paulo) e escreve para a coluna "Recortes de Cena" do site Ator Criador.

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