A polifonia dramatúrgica da Cia Hiato

Ficção com Aline Filócomo - Crédito Divulgação | Ator Criador

Na linguística, polifonia é, segundo Mikhail Bakhtin a presença de outros textos dentro de um texto, causada pela inserção do autor num contexto que já inclui previamente textos anteriores que lhe inspiram ou influenciam.

A Cia Hiato que está com seu projeto de ocupação no TUSP desde o mês de julho, já permeou sua experiência pela realização de oficinas, apresentação de parte de seu repertório atual e a edição revista e constantemente atualizada de 2 Ficções.

Minha admiração por esse grupo começou com uma 1ª mostra de repertório que realizaram no CCSP em 2011, onde tive a oportunidade de ver Cachorro Morto e Escuro, em ambas havia uma visão por modos de comunicação contemporâneos, sobretudo pela quebra da língua falada ou pela repetição de fatos, permitindo ao espectador ver outros pontos de vista sobre a obra. Percebi nestes dois espetáculos a possível lacuna que justificaria o nome da companhia até então. Meses depois estrearam O Jardim, que inauguraria uma linha de pesquisa que segue até hoje. O Jardim contou com estreia no teatro de arena do Sesc Belenzinho, para contar a(s) história(s) carregada(s) de fragmentos de um passado construído, ou ainda, de uma memória coletiva, pertencente a todos nós viventes de uma tradicional – ou não – estrutura familiar. O tema da separação foi o que ficou mais evidente naquele momento, onde em três núcleos, havia a separação de um casal em 1938; a separação de duas irmãs e seu pai com Alzheimer, aliás outra relação de separação, com a memória; e por fim, a separação com a casa que construiu uma família e com isso, todos os objetos provenientes para registro de um futuro inóspito. O ambiente cenográfico carregado de caixas – vazias ou não – transportavam o espectador para seu hiato, naquele lugar onde não existe uma resposta para questões. Fui transportado para relações familiares vividas e outras que imaginava, um dia precisar vivê-las.

Com sua nova ocupação no TUSP, O Jardim ganhou temporada disputada com filas de horas antes da abertura da bilheteria, força que o grupo ganhou pela grande crítica e pelo currículo que ganhou ao viajar por grandes festivais internacionais promovendo sua pesquisa. Desta vez revivi a experiência de duas maneiras, assistindo mais uma vez a maestria do espetáculo e participando da Oficina de Desmontagem e Restauração do espetáculo, onde membros da companhia colocaram seus modos de criação e permitiu aos atores convidados experimentar a construção de um mapa de memórias, encontros familiares entre figuras inexistentes e que ali, no ambiente da ficção, passavam a ser totalmente críveis. Frases, gestos, equívocos de linguagem, tudo exposto sem amarras para a construção de uma que se justificaria pela ação.

Ainda nesta ocupação, que se encerra em breve, estão os espetáculos Ficção e 2 Ficções. No primeiro são 6 monólogos – que só poderão ser vistos em 3 dias, são 2 deles por sessão – onde xs intérpretes (Aline Filócomo, Fernanda Stefanski, Luciana Paes, Maria Amélia Farah, Paula Picarelli e Thiago Amaral) apresentam registros biográficos que envolvem uma vida que viveram com a arte, ou ainda, de uma relação construída em sala de ensaio, não é possível saber o que é verdade, não é possível saber o que é ficção, mais uma vez justificando esse espaço entre espectador – intérprete – direção – espetáculo. Dando continuidade à pesquisa com O Jardim, segundo as palavras do diretor/dramaturgo da companhia, foram desenvolvidos museus pessoais, que se revelaram a partir de relatos, reconstrução de fatos ou dando um novo final para histórias perdidas, nesse enredo foi possível inserir participações especiais como a atriz Milena Filócomo – no monólogo de Aline – e o Sr. Dilson do Amaral – com seu filho, Thiago.

Em 2 Ficções a lacuna se justifica enfim. Em sua primeira temporada no Sesc Pompéia, o público tinha duas perspectivas de observação, uma como plateia fixa e outra como plateia exploradora, que contou com a oportunidade de passear pelos restos de uma casa de memórias. Durante a ocupação no TUSP a dilatação do espaço e a relação de atores e diretor de justificam numa abertura sem precedentes, o autor/diretor Leo Moreira entra no espetáculo como ator e oferece o seu mapa de memória visual ficcional. Não por acaso, o icônico enredo de A Gaivota, de Anton Tchékhov, se insere nessa construção narrativa, onde vemos a (des)construção de um espetáculo para dar significado maior às relações perdidas, ou desconstruídas pela memória real.

A coragem da Cia Hiato com seu projeto Ficção está num painel onde o teatro busca um significado próprio, de um vão, do que não pode ser respondido, justamente porque as palavras não ditas são aquelas que o espectador se pergunta e quase sempre não pode responder e ouso dizer que não devem ser respondidas, por ser de caráter polifônico.

Serviço:

Ficção / 2 Ficções – Ocupação Cia Hiato
TUSP
Rua Maria Antônia, 294 – Consolação.
Telefone: 3123-5233.
Possui acesso para deficiente. 98 lugares.
Classificação etária: 14 anos
Ficção: Quarta a Sexta: 20h30
2 Ficções: Sábado e Segunda: 20h30 / Domingo: 19h
Até 21/08 (Ficção)  /  24/08 (2 Ficções).

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Rafael Carvalho
Rafael Carvalho é ator, diretor, dramaturgo e arte-educador. Formado pela Universidade Federal de Ouro Preto nas habilitações de Licenciatura e Bacharelado em Direção Teatral. Integrou a 1ª Turma do Núcleo de Dramaturgia Sesi-SP/British Council. Autor das peças: "desFOCO" – publicado pela Editora Sesi-SP; "Ceci n'est pas une pipe {Este não É um cachimbo}" – com o grupo Transitório 35; "[A Cidade do Entre]" – com o Coletivo Onírico de Teatro (Campinas/SP); entre outras. Com o monólogo "MCNA - Meu Corpo Noite Adentro", foi premiado nas áreas de interpretação e dramaturgia. Atualmente é professor no Curso Profissional de Ator do Teatro Escola Macunaíma (São Paulo) e escreve para a coluna "Recortes de Cena" do site Ator Criador.

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