Texto teatral consagrado no cinema
Estreou no dia primeiro de março de 2015 no Rio de Janeiro o espetáculo “Um Estranho no Ninho”, texto teatral de 1963 de Dale Waserman (baseado no romance de Ken Kesey), montado em mais de quinze países, como França, Suécia, Bélgica e Rússia. A peça foi adaptada para o cinema em 1975, com o ator Jack Nicholson no papel principal e direção de Milos Forman. O filme se consagrou mundialmente, conquistando diversos prêmios, entre eles 5 Oscars: melhor filme, melhor ator, melhor atriz, melhor diretor e melhor roteiro adaptado[1]. A história se passa quase inteiramente em um hospital psiquiátrico americano da década de 1970, retratando com perfeição a melancolia, os traços de loucura e o cerceamento imposto pelas autoridades daquele tipo de instituição. Certamente, este filme trouxe visibilidade e importantes contribuições para a Reforma Psiquiátrica[2] que vinha se espalhando em todo o mundo, na luta por uma abordagem mais humana e menos agressiva, para que os pacientes psiquiátricos fossem menos embotados e mais estimulados no desenvolvimento da subjetividade.
Universo Psiquiátrico
O personagem de Jack Nicholson (Randle Patrick McMurphy), brilhante na sua interpretação, representa um pouco este discurso, ainda que de forma anárquica e idealizada. Livre de algum comprometimento psiquiátrico evidente, McMurphy é um prisioneiro que se aproveita do diagnóstico da loucura para escapar dos trabalhos forçados. Contudo, dentro do repressor ambiente psiquiátrico, ele acaba criando fortes laços de amizade com os pacientes e assume uma liderança quixotesca em nome da liberdade dos internos. O universo psiquiátrico é especialmente comovente para mim, pois acompanhei o meu pai em diversas internações em instituições públicas e privadas. Convivi com pacientes com variados transtornos, diversos tratamentos e todos os tipos de profissionais – muitos, impacientes e burocráticos; alguns, afetuosos e solidários. Quarenta anos após o lançamento do filme, o tratamento psiquiátrico ainda é uma questão complexa. Ainda é difícil perceber a linha tênue que separa os necessários efeitos químicos que ajudam a estabilizar um paciente, do excesso que controla e embota um indivíduo. Meu pai faleceu em 2013, por outras complicações. Lutamos muito para que ele tivesse a melhor qualidade de vida possível.
Um estranho no ninho carioca
Antes de qualquer análise teatral, é preciso ressaltar a ousadia de Tatsu Carvalho – produtor e protagonista do espetáculo que estreou no início de março. Ele elegeu um texto que se tornou um clássico do cinema. Um texto que mergulha no universo da loucura, exibindo e questionando as suas instituições. Escolheu interpretar um dos personagens mais marcantes da história do cinema, criado por um dos atores mais consagrados de todos os tempos. Tatsu é um Ator Criador, abandonou a posição passiva do ator que fica eternamente se preparando para ser chamado para o papel da sua vida. Ele mesmo criou as condições para assumir esse papel. Neste caso, comprou os direitos da peça, formou um elenco com dezesseis atores e colocou dinheiro do próprio bolso para levantar a montagem. Não conhecia o seu trabalho como produtor, mas esta iniciativa, por si só, é digna de aplausos. Seria cruel comparar uma montagem carioca sem patrocínio com um filme clássico hollywoodiano. Mas toda ousadia possui os seus riscos, e o público mais informado poderá não poupar a montagem desta crueldade. Até porque, existem muitas semelhanças estéticas entre a encenação e o filme, provavelmente porque o grupo procurou ser o mais fiel possível às rubricas[3] do texto original. Acredito que uma adaptação mais descolada dessas referências, talvez pudesse proporcionar uma maior autonomia na criação do espetáculo.
Interpretações
O McMurphy de Tatsu, que seria a referência mais óbvia a ser evitada, tem uma proposta um pouco diferente. Ele compõe um tipo mais jovial e risonho. O personagem ficou simpático, tem bons rompantes em alguns momentos de fúria e funciona bem na engrenagem da peça. Mas senti falta da melancolia daquele presidiário solitário, dos incômodos e do mal estar causados pelo ambiente. McMurphy sugere, de fato, uma alegria romântica que nega o sofrimento, mas extrair demasiadamente este aspecto do personagem pode torná-lo inverossímil. Tatsu expressa muito bem o deboche, a agressividade e a revolta do protagonista, mas queria ter visto mais o seu lado sombrio e os engulhos que um estranho sente em um hospital psiquiátrico. Os agradecimentos à Colônia Juliano Moreira[4] no programa do espetáculo, levam a crer que o grupo visitou esta instituição e vivenciou a sua realidade. Isto se sente na interessante composição do coletivo de internados da peça.
Com raros momentos mais caricaturais, os pacientes estão bastante convincentes. Ricardo Ventura (que também assina a tradução do espetáculo) faz um belo trabalho, representando um homem com uma patologia mais neurológica, com muitas torções corporais. Sua composição é delicada e precisa, extraindo inclusive tiradas cômicas com as falas ousadas daquela figura tão comprometida. Também chama a atenção o trabalho de Vitor Thiré, como o jovem gago. Ele consegue expressar bem a angústia e os pequenos momentos de alegria do personagem. A enfermeira de Helena Varvaki é bem construída, evocando rigidez e autoridade sem cair no estereótipo da vilã. O restante do elenco mergulha fundo na proposta e contribui bem na apresentação da história: Felipe Martins, Charles Asevedo, Henrique Gottardo, Hylca Maria, Junior Prata, Lorena Sá Ribeiro, Marcelo Morato, Rafael Oliveira, Ricardo Lopes, Tatiana Muniz e Zé Guilherme Guimarães.
Estrutura técnica do espetáculo
A iluminação de Elisa Tandeta é adequada. Estabelece uma boa ambientação nas cenas mais sombrias e poéticas, além de valorizar o belo cenário de Pati Faedo. Com uma proposta bastante realista e parecida com o hospital do filme de Milos Forman, este é um dos pontos altos do espetáculo: um cenário único, funcional e muito bem construído, que evoca a frieza e o sufocamento de um hospício. O mesmo se pode falar dos figurinos de Alessandra Padilha e Jerry Rodrigues: bonitos, realistas e muito próximos ao referencial do filme. A trilha de Mauro Berman é um dos aspectos mais originais da peça. Inventiva e poética, contribuiu muito para a criação dos climas sugeridos pelo texto. Bruce Gomlevsky dirige a peça de forma harmoniosa, coordenando todos esses setores e a representação desse coletivo de loucos com simplicidade, deixando que a dramaturgia fique em primeiro plano. As únicas ressalvas ficam por conta da possibilidade de uma camada mais introspectiva na composição do protagonista e de um maior descolamento das rubricas originais e, consequentemente, do filme.
A teatralidade da loucura
A teatralidade da loucura é muito bem explorada pelo autor do espetáculo. Hamlet[5] já se fazia de louco e usava o teatro como metáfora da vida e revelador das verdades. McMurphy também brinca de louco, questionando os limites entre loucura e lucidez. Ele encarna a loucura de forma consciente, tanto para escapar do trabalho forçado, quanto para se aproximar dos verdadeiros loucos, aqueles que não conseguem se despir dos seus personagens. O auge deste interessante jogo entre loucura e representação é na cena do jogo de baseball: impedido de assistir a uma partida importante do campeonato na televisão coletiva do hospital, McMurphy permite-se a loucura de ver e vibrar com uma partida imaginária diante de uma TV desligada. Este gesto é premiado com a completa admiração e adesão dos colegas internados. Neste sentido, o autor encontra um aspecto muito poético da loucura, que é vivida de forma tão solitária e triste na nossa sociedade.
Reveja o filme e assista ao espetáculo
Para concluir, espero que todas as minhas observações agucem a sua curiosidade para ver este espetáculo. A empreitada do grupo é muito bonita e corajosa, merece ser abraçada pelo público carioca. É uma apresentação vibrante, intensa e delicada. O clássico do cinema reencontra o seu lugar original: o palco. Que a loucura do teatro contagie a todos nós!
Serviço
Um Estranho no Ninho – Em cartaz de sexta à domingo, sempre às 19h. Teatro do Centro Cultural Justiça Federal – Av. Rio Branco, 241 – Centro, Rio de Janeiro. Ao lado da estação Cinelândia do metrô. Tel: 3261 2550. Preço: R$ 30,00. Tempo de duração: 130 minutos. Classificação: 14 anos. Estreou no dia 1º de março de 2015. Temporada até o dia 3 de maio.
[1] Premiações do Oscar recebidos pelo filme- melhor filme: Michael Duglas e Saul Zaentz; melhor diretor: Milos Forman; melhor ator: Jack Nicholson; melhor atriz: Louise Fletcher; melhor roteiro adaptado: Laurence Hauben e Bo Goldman. O filme também foi indicado no Oscar daquele ano nas seguintes categorias: melhor ator coadjuvante: Brad Dourif; melhor fotografia: Haskell Wexler e Bill Butler; melhor edição: Richard Chew, Lyzee Klingman e Sheldon Kahn; melhor trilha sonora original: Jack Nitzsche.
[2] No Brasil, este movimento foi liderado pela Dra. Nise da Silveira, criadora da Casa das Palmeiras, espaço de convivência para pacientes psiquiátricos, com grande estímulo da criatividade em diversas linguagens artísticas, principalmente nas artes plásticas. O espaço encontra-se em plena atividade em Botafogo, bairro na Zona Sul da cidade do Rio de Janeiro.
[3] Rubrica é tudo que consta em um texto dramatúrgico que não é diálogo: indicações cenográficas, características dos personagens, ações etc., colocadas pelo autor para orientar uma montagem.
[4] A Colônia Juliano Moreira, situada em Jacarepaguá (Zona Oeste do Rio de Janeiro) foi inaugurada como instituição psiquiátrica em 1924 no Engenho Novo. Na década de 1960 chegou a abrigar 5 mil pessoas. No início dos anos 80, após longo processo de deterioração, a instituição iniciou uma transformação do seu modelo assistencial, em consonância com a Reforma Psiquiátrica que vinha acontecendo em diversos países. Foram abolidos o eletro-choque, as lobotomias e o abuso de neurolépticos. A instituição hoje abriga cerca de seiscentos pacientes, com idade média de 66 anos. A maior parte deles é portadora de transtornos mentais graves e persistentes, tendo vivido boa parte de suas vidas em hospitais psiquiátricos. A média do tempo de internação desta população é de 40 anos.
Fonte: www.sms.rio.rj.gov.br
[5] Hamlet – do final do século XVI, uma das tragédias mais populares do dramaturgo inglês William Shakespeare. Hamlet é um príncipe dinamarquês que lança mão de vários recursos teatrais para desvendar o assassinato do seu pai, como fazer-se de louco e criar uma encenação deste assassinato para impressionar os suspeitos e revelar os culpados.