A temática ligada ao suicídio é vasta. Estudos psicanalíticos, doutrina jurídica, filosofia, religião, teatro…. As abordagens nos levam para muitos caminhos. Desde uma discussão numa roda de amigos ou parentes ao enfrentamento humano diante de um caso concreto, o suicídio, na maioria das vezes, nos remete a perguntas sem respostas, mesmo que o suicida tenha deixado um bilhete, uma carta, explicando o porquê de sua decisão.
A dúvida persiste: “Mas era necessário? Não haveria outro caminho, outra atitude”?, se perguntam os que vivenciam de perto ou simplesmente conversam sobre tal fato.
A chamada morte voluntária não é considerada crime na esfera penal, mas a sanção pode alcançar aquele que moralmente ou materialmente induz ou instiga alguém ao suicídio. O art. 122 do Código Penal traz a previsão: “Induzir ou instigar alguém a suicidar-se ou prestar-lhe auxílio para que o faça”, pena de 2 a 6 anos de reclusão. Num texto escrito em 1973, Heleno C. Fragoso escreveu sobre o suicida que deixa bilhetes ou cartas culpando outra pessoa por sua atitude extrema: “No que tange à prova do crime, já se decidiu, entre nós, que ‘cartas, documentos ou bilhetes deixados pelo suicida, antes do suicídio, nenhuma prova representam quando isolados, pois são feitos em plena tormenta psicológica’ (RF, 161/375). Nessa matéria, no entanto, não existem regras gerais, embora se saiba que os suicidas, em grande número, sofrem de neuroses, psicoses ou outros graves distúrbios da personalidade.” (veja aqui, nas páginas 35 a 47)
Uma decisão do STJ – Superior Tribunal de Justiça traz que “(…) os motivos que levam alguém ao suicídio se encontram num campo subjetivo, não podendo terceiros adentrarem na esfera psicológica do falecido de modo a afirmarem por ele as causas de tal atitude brusca”. (STJ. REsp 480.151)
Uma dívida, um ato social reprovável, uma indiferença, um amor não correspondido, uma doença, são razões plausíveis para acabar com a própria vida? Ou há no suicida um encaminhar sequencial que, junto a uma angústia crescente, o transforma num alvo de si próprio, que o faz optar pelo término da sua existência? Nossa legislação prevê que encorajar, sugerir, estimular ou tomar a atitude deliberada de, por exemplo, dar a alguém substância química para ser ingerida ou uma arma carregada, sabendo que a vítima é pessoa fragilizada, depressiva, pode ser considerado induzimento. O Direito, como regra, trabalha com essas duas hipóteses ligadas ao induzimento ou instigação ao suicídio: estímulo, encorajamento; ou fornecimento material dos meios para o autoflagelo.
No teatro, creio, o ator que consiga meditar sobre o suicídio – no sentido de se colocar no lugar do suicida, e não só olhar a ação como terceira pessoa, analisando a situação – nos ajuda, como espectadores, a entender ou “adentrar”, no que Stanislávski chamava de “adaptação”. Dizia ele: “… usaremos essa palavra, adaptação, para significar tanto os meios humanos internos quanto externos, que as pessoas usam para se ajustarem umas às outras, numa variedade de relações e, também, como auxílio para afetar um objeto”. (p. 268) (2)
Assim, as condições humanas, a vivência e experiência pessoais vão determinar os meios que serão utilizados para a adaptação do ator em cena. Adaptação, assim, pode ser representada por um agrupamento de condições internas de nossa vivencia aplicadas à personagem que se vivencia na cena. E muitas vezes sem palavras, já que elas não “… podem esgotar todos os matizes mais tênues das emoções que sentimos…”, afirma Stanislávski (p.269). São os tais “pensamentos interiores” ou “sentimentos”, sem os quais o trabalho do ator é transformado num clichê, ou num carimbo (utilizado sempre para a mesma cena, tornando-se “surrado”).
No caso específico do suicídio de Trepliov, razões, motes, situações, elementos que o levaram a tirar a própria vida estão, em princípio, à disposição do leitor e do público, pois o texto de Tchekhov nos brinda com os encantos e desencantos daquela situação. Tentemos ver.
A rubrica/epígrafe do Primeiro Ato informa que está acontecendo a montagem de um espetáculo teatral. Tal espetáculo é criação de Konstantin Gavrilovitch Trepliov, personagem-autor da peça a ser apresentada na casa de campo da família. Sua fala contemplando o estrado que serve de palco: “Isso que é teatro! O pano de boca, o primeiro bastidor, o segundo bastidor, depois um espaço vazio. Nenhum cenário! A vista se abre direto para o lago e o horizonte” (p. 9). Ou seja, o primeiro elemento que nos leva à meditação é verificar que o teatro que ele acredita ser verdadeiro é diferente daquele existente na época. “Precisamos de novas formas. Novas formas, e se elas não existirem, é preferível que não haja nada…”. (p. 11)
Além disso, Trepliov ama duas mulheres: Arkádina, sua mãe, e Nina, a jovem que vive no campo, nos arredores da casa da família, e que é a atriz principal da peça escrita por ele. Com a mãe a relação é conflituosa. Ele afirma: “… meus vinte e cinco anos a fazem lembrar sempre que não é mais jovem (…) ela me odeia por isso” (p. 10) … “Eu amo minha mãe, amo muito; mas ela leva uma vida tola, anda com esse escritor, é mimada pela imprensa – isso me cansa muito” (p.11). “Esse escritor” é uma referência a Trigorin, escritor russo começando sua carreira e companheiro de Arkádina.
E com Nina, Trepliov vive um amor não correspondido.
Trepliov tenta o suicídio uma vez. Uma das cenas mais sensíveis e agudas que já vi no palco é aquela em que sua mãe, Arkádina, busca curar a ferida oriunda dessa tentativa. Acredito que Tchekhov tenha colocado o suicídio tentado para criar essa cena à qual me refiro. A tentativa gera, entre mãe e filho, um encontro tenso, colérico, arrebatador.
Duas situações ator/mentam Trepliov: a primeira, uma nova concepção de teatro que o estimula a criar e escrever uma peça para Nina, mas que Arkádina não reconhece como teatro. “Isso é algo decadente”, diz a mãe logo no início da apresentação; e o segundo, o amor às duas mulheres que o angustiam, já que Nina se apaixona por Trigorin, que é o escritor-parceiro de Arkádina.
Arkádina é atriz famosa, reverenciada na sociedade russa, e zomba do envolvimento de Trigorin com Nina: “O amor de uma moça do interior? Oh, como você se conhece pouco”, provoca a atriz. (p.46)
O destino das quatro personagens: Trigorin e Arkádina permanecem juntos, Nina se torna uma atriz e Trepliov se suicida. Ele amava Nina, que amava Trigorin, que não sabia se amava realmente alguém… e Arkádina, que amava o teatro. Angustiado e melancólico por não ter o amor de Nina e o de sua mãe, e por seu teatro não ser reconhecido, acaba com a própria vida. “Estou sozinho, nenhum afeto me aquece, sinto frio, como se vivesse debaixo da terra, e tudo que escrevo é seco, sem vida e sombrio”, confessa a Nina pouco antes do suicídio. (p. 63)
Assim, Tchekhov “soluciona” o conflito. Não coloca nas mãos de outra personagem a arma que mata. Trepliov é levado ao suicídio por se sentir desprezado por Nina e por sua mãe. Além, ele odeia Trigorin, que lhe “roubou” seu eterno amor…
Amores roubados e um jogo de poder enfeixam as relações que seriam simplesmente duas na visão de Trepliov: ele e Nina de um lado; Arkádina e Trigorin de outro. O mundo de Trepliov só comporta isso. Não há lugar para um terceiro numa relação a dois.
Ao ler o texto da peça é possível pensar que a falta do amor de Nina – que mantém por um tempo uma relação com Trigorin –, e o não reconhecimento de sua arte pela mãe e pela sociedade russa possam ter levado, induzido, instigado a personagem ao suicídio?
Trepliov não deixou carta nem bilhete; não disse palavra antes do ato extremo. “Saiu de cena” sozinho na cena de outros, deixando como prova ao espectador o som de um tiro. Ele estava atrás da coxia, num dos aposentos da casa de Arkádina. Nina, a Mãe e o novo teatro o confortariam. Mas foram condutores do desprezo por si.
Fica a pergunta: A angústia o levou ao suicídio? O desprazer suplantou o prazer e emitiu um sinal naquela tentativa frustrada? Tchekhov, me parece, desprezou propositalmente o sinal em seu texto e deu a Trepliov a oportunidade de “sair de cena”, aplicando um auto castigo.
Ao espectador e ao leitor fica o que não foi dito nas cenas. Ainda bem.
(1) TCHEKHOV, Anton. A gaivota. Trad. Gabor Aranyi. Veredas, Mairiporã, SP, 1998.
(2) STANISLÁVSKI, Constantin. A preparação do ator, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 29 ed., 2012.