A atriz Clarice Niskier recebeu o livro “A Alma Imoral” (Editora Rocco) das mãos do rabino Nilton Bonder em um programa de televisão depois de ser entrevistada sobre uma peça em que estava atuando à época. Durante a sua entrevista uma pergunta enviada por e-mail por uma telespectadora (ela conta esta história na peça) causou certa controvérsia e ela acabou sendo acudida em sua resposta pelo rabino, que estava ali para divulgar o lançamento do seu livro. Ao ler A Alma Imoral, Clarice percebeu que poderia nascer algo daquele texto. Esta foi a semente de onde germinou o monólogo que recebe o mesmo nome e está em cartaz no Teatro Eva Herz, na Livraria Cultura, até o dia 26 de março próximo. Por coincidência, eu vi Clarice dando uma entrevista sobre esta peça neste mesmo programa de entrevistas alguns anos depois para divulgar este espetáculo e fiquei curioso para assisti-lo, o que fiz em 2010. Desde então, tornei-me fã e propagador desta peça. Recomendei-o a muitas amigos e amigas. Já o assisti duas vezes e, em uma delas, enfrentei o frio da madrugada paulistana durante uma Virada Cultural para ver Clarice desfolhar filosofias, indagações e revelar a santa imoralidade das nossas almas para um público que, de tanto silêncio e atenção, parecia estar orando diante de um altar. Creio que o leitor desta impressão já percebeu que vai ler uma opinião, até certo ponto, apaixonada sobre este monólogo.
A grande riqueza do monólogo A Alma Imoral está no texto de Bonder. Do livro, Clarice extraiu frases que poderiam soar como meros clichês, mas que reverberam como algo mais nos ouvidos e mentes dos espectadores. Não é por nada que eles continuam voltando para rever este monólogo por mais de oito anos, tem em que está em cartaz e já foi apresentada em várias cidades do país (um feito nada desprezível no Brasil).
O cerne do livro/espetáculo está na história do povo judeu. Bonder consegue um novo enfoque sobre a temática e surpreende quem vai ver a peça com a expectativa de ver/ouvir mais um discurso com elogios a fortaleza moral do judaísmo. Ele não nega a importância da tradição do seu povo, mas o seu foco está em como foi o fato de transgredir estas tradições que fez com que o povo judeu pudesse manter-se vivo e organizado até os dias atuais. Clarice percebeu o potencial transgressor do livro e o transportou para o palco, onde consegue levar o tema tradição/transgressão para além do judaísmo (caso da publicação de Bonder), fazendo com que o texto transcenda para o nosso cotidiano. Está aí, possivelmente, a causa do seu sucesso. Não importa qual a sua religião ou mesmo se você não professa alguma fé, você vai ser impactado pelo que vai ver/ouvir no palco.
O monólogo funciona como se fosse uma conversa entre duas pessoas que não necessariamente conhecem uma a outra. É como se Clarice estivesse sentada ao nosso lado em um sofá tirando o nosso sossego com revelações e perguntas que nunca antes havíamo-nos dado a devida atenção e foram “escanteadas” pelos nossos mecanismos de defesa, quer estejamos conscientes ou não desta artimanha da sobrevivência humana. A diferença deste pretenso diálogo é que Clarice está nua durante uma parte da peça e algumas vezes utiliza apenas um pano preto para cobrir o seu corpo e transformar-se em uma mulher do Oriente Médio. Sua nudez é uma alusão ao paraíso mítico do livro do Gênesis, lugar onde a alma curiosa e desejosa é batizada com uma moral castradora. No palco, além dela, apenas uma mesa, um copo com água e uma cadeira. Ela sabe que o texto é denso e logo no início repete uma fala afirmando para o público que sabe que foi difícil entende-la, pois ela mesma teve que dificuldades para absorve-la em sua primeira leitura (se você ler o livro, você concordará com ela). Em outro momento do espetáculo, ela pausa e pede para o público pensar e pedir a repetição de uma cena que gostaria de rever para melhor saborear a reflexão.
As flechas de Bonder apontam para alvos inusitados como o incesto, a traição conjugal e liberdade natural da alma que, segundo ele, é imoral (não amoral). Ao nos atingir, estas flechas põe-nos de forma desconfortável na posição de acolhimento das perguntas que talvez estavam lá no canto do nosso cérebro esperando por uma delas para que saíssemos aos gritos de O que faço agora? ou Viva a Transgressão! Para ele, a alma é imoral porque não conhece a moralidade da civilização com suas regras repressoras e mantenedoras da ordem vigente. Ela é livre para desejar o que quiser e esta é sua essência. É o corpo que a aprisiona pelas suas condicionalidades humanas e torna-se o seguidor da tradição (cultural, religiosa, etc.) que impede o porvir do desejo em sua realização plena, ou mesmo parcial. E a tudo isso ele adiciona exemplos da Bíblia como Eva e sua sagrada desobediência, Abraão e sua amante, Lot e suas filhas, Noemi e sua esperteza, Davi e suas amantes etc.
São as palavras escritas por Bonder e espetacularizadas por Clarice as protagonistas do monólogo. Clarice está ali, como boa atriz que é, apenas para canalizá-las. Revela para os espectadores fatos e emoções que estavam encobertos e careciam de quem os desencavassem com delicadeza. Este é o dom dos verdadeiros artistas, mas somente quando eles mesmos acreditam naquilo que fazem. É o teatro cumprindo a sua função de libertar, transmutar e levar ao encantamento através da fala e do corpo em movimento de forma imoral, no sentido revelado pelo rabino Nilton Bonder. Ao deixar a sala de espetáculo da Livraria Cultura, você vai se perguntar a quem servem as tradições (religiosas ou não) e vai torcer para ousar/transgredir mais em sua vida.
Ficha Técnica
A Alma Imoral
Elenco: Clarice Niskier
Supervisão de Direção: Amir Haddad
Texto: Adaptação do livro A Alma Imoral por Clarice Niskier
Onde: Teatro Eva Herz
Quanto: R$ 60,00 (R$ 30,00 meia entrada)
Quando: Quartas e Quintas às 21h. Sessão Matinê, às 18hs nos dias 12, 18, 19 e 26 de março.
Em cartaz até o dia 26 de março.