Impressões sobre a Língua em Pedaços

A LINGUA EM PEDACOS |IMPRESSOES | ATOR CRIADOR

Poucas mulheres influenciaram tanto a Igreja Católica quanto a monja Teresa de Ávila. Esta espanhola era uma escritora, conselheira e, para muitos, uma das maiores místicas do cristianismo no mundo ocidental. Foi perseguida pela hierocracia, tão presente na hierarquia católica, que temia a sua influência sobre o povo com sua pregação sobre uma vida monástica mais simples. Denunciava o luxo dos prelados e repetido nos conventos femininos e, não ficando apenas na denúncia, começou a sua própria congregação religiosa como uma forma de mostrar um exemplo prático do que propunha.

Para alguns, Teresa é uma proto-feminista católica, um título que também cabe a freira alemã Hildegarda de Binguen, que viveu séculos antes de Teresa e, a exemplo desta, foi perseguida por alguns bispos. Teresa, porém, introduziu o elemento do prazer espiritual conjugado com o corporal ao descrever como as suas meditações elevavam o seu espírito e davam prazer ao seu corpo.

Teresa foi realmente uma mulher a frente do seu tempo. Isso deve-se, como revela o espetáculo A Língua em Pedaços, com texto de Juan Mayorga e direção de Elias Andreato, aos livros que teve acesso quando ainda era bem jovem. É sempre bom lembrar que o acesso a leitura era algo negado às mulheres em sua época. Tesesa foi uma felizarda neste sentido e isto fez toda a diferença em sua vida.

A montagem teatral centra-se na batalha de perguntas e respostas entre um bispo inquisidor e Teresa, que acabara de fundar a sua primeira casa religiosa com algumas freiras dissidentes do Carmelo. A Língua em Pedaços não procura espetacularizar o misticismo de Teresa, posto que a intenção do texto é apresentar a vida da filha ilustre de Ávila. O cenário é forte em simbolismos cristãos. O muro do claustro formado por retângulos transparentes para mostrar a relação da nova congregação em diálogo com o mundo que está fora do convento e a mesa como símbolo da partilha do alimento e do sacrifício. Esta última como metáfora para a compreensão de que homens e mulheres são convidados ao sacerdócio. A atriz Ana Cecília Costa passa boa parte da peça amassando o pão enquanto é inquirida pelo bispo, como que a dizer que Teresa também era uma sacerdotisa, já que o pão, torna-se o Cristo eucarístico no rito católico da missa. Não à toa, Teresa é uma das inspirações para as mulheres estadunidenses e europeias do Movimento pela Ordenação de Mulheres para o Sacerdócio na Igreja Católica.

O espetáculo é bem didático no repasse da biografia da santa de Ávila. A atriz Ana Cecília Costa encontrou a expressão facial perfeita para a personagem Teresa. Sua face está serena, mas não de uma serenidade angelical abobalhada. Ser mística nunca implicou negar a realidade terrena e fingir um poder celestial que não se possui, mas sim a entrega total ao que se professa sabendo que haverá consequências. Ela sabe porque o bispo está a investigá-la e o perigo que corre se responder as perguntas do prelado com algo que possa compromete-la e não há razão para sorrisos angelicais. Ao final, o bispo mesmo não se convencendo e levantando todos os tipos de insinuações contra Teresa, inclusive de que ela liderou a dissidência para ficar mais próxima de outras mulheres, não consegue dissuadi-la do seu intento.

O resultado de toda esta história é que Teresa foi canonizada pela Igreja décadas depois de sua morte e foi elevada ao altar de Doutora da Igreja Católica, uma honra para poucos e com apenas quatro mulheres em uma lista com mais de trinta personalidades. Quanto aos seus perseguidores, receberam o prêmio reservados aos bajuladores e hipócritas: o esquecimento. Ou alguém sabe o nome de algum bispo espanhol que perseguiu Teresa?

Veja mais sobre o espetáculo.

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Flávio José Rocha trabalha com Teatro do Oprimido desde de 2005 e é um apaixonado por todas as formas do fazer teatral. É também doutorando em Ciências Sociais na PUC-SP e pesquisa temas relacionados à questão socioambiental.

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