Provocações diversas. Cada um dos espetáculos que observei no mês de maio apontam para diversos vetores, sejam pela ousadia dramatúrgica, pelo invencionismo de clássicos, ou ainda, por uma interpretação carregada de detalhes que provocam a mente do espectador à cada vez mais investigar-SE.
No início de maio fui conferir o ator Eduardo Okamoto com seu novo monólogo, “OE”, inspirado pela obra de Kenzaburo Oe. Confesso já ter me apresentado com certa carga de expectativa, visto que acompanho os trabalhos de Eduardo há anos, simplesmente por admirar a singela e intensa dedicação que esse artista tem com seu trabalho. Tive a oportunidade de participar de uma de suas oficinas onde ele propõe uma pesquisa da dramaturgia no corpo do ator, como dramaturgo fui conferir na pele e percebi que a magnitude de seu trabalho para uma “escrita” atoral, só poderia estar num único local: dentro de si. Talvez minha grande admiração por Eduardo venha desse pensamento tão genuíno entre a invenção e a realidade, no caso de “OE”, é a maneira como se dá a construção da imagem que mais me provocou. A narração, muitas vezes frenética e/ou ininterrupta – totalmente precisa – obriga o espectador a se debruçar sobre o universo do pai que quer dar a definição de todas as coisas existentes no mundo a seu filho primogênito com deficiência intelectual. A riqueza da dramaturgia que Cássio Pires assina, permite visualizarmos o universo desse pai e desse filho que ambos aprendem com o outro, o significado do sonho, do contato e da singela pureza entre cores, notícias de jornal, o enfrentamento da morte e a passagem violenta e ininterrupta dos dias. Marcio Aurélio, responsável pela encenação e iluminação, favorece a interpretação de Eduardo com um visual simbolista, seja pela escolha dos objetos de cena ou pela luz, que no pequeno Espaço Beta do Sesc Consolação favoreceu para uma ambientação vigorosa e surpreendente.
A poesia dos trabalhos solo de Eduardo Okamoto se sustentam na base de um ator criador que é crítico sem ser presunçoso; brilhante com extrema generosidade; um grande pintor que a cada representação desenha imagens surpreendentes e impactantes. Recordo-me de Antonin Artaud, ao evocar uma nova técnica para a conquista de seu Teatro da Crueldade, presente num dos manifestos do livro “O Teatro e seu Duplo”.
“Trata-se portanto de fazer do teatro, no sentido próprio da palavra, uma função; algo tão localizado e preciso quanto a circulação do sangue nas artérias, ou o desenvolvimento, aparentemente caótico, das imagens do sonho no cérebro, e isso através de um encadeamento eficaz, uma verdadeira escravização da atenção. […] o teatro deve procurar, por todos os meios, recolocar em questão não apenas todos os aspectos do mundo objetivo e descritivo externo, mas também do mundo interno, ou seja, do homem, considerado metafisicamente.”
Indico como extensão de leitura para conhecer a obra de Eduardo Okamoto, a leitura do livro “Hora de nossa hora: o menino de rua e o brinquedo circense”, de sua autoria e publicado pela Editora Hucitec.
Ainda na linha de investigação voltada ao espectador está “Sopro”, uma livre leitura das peças “Ato sem Palavras I” e “Passos”, de Samuel Beckett, um autor que aponta questões ruidosas, repleta de silêncios – daqueles avassaladores – que ecoam em seu leitor/espectador uma carregada possibilidade de interpretações, onde tudo é possível. Recordando de outras peças como “A Última Gravação de Krapp” ou “Esperando Godot”, há um rigor do qual atores e encenadores devem seguir para não corromper seu pensamento literário, nessa via há um caminho de descobertas irrefreáveis, uma vez que é do trabalho do intérprete dar significado à palavra escrita, matematicamente orientada pelo autor, como se estivesse presente a seu lado durante todo o tempo de estudo e pesquisa prática. No caso de “Sopro”, do Coletivo Irmãos Guimarães, com interpretação de Liliane Rovaris e Yara De Cunto, há um apreço pelo detalhe e pela pausa. Nenhum dos “clacks” de cada passo tem um ritmo menor que o outro, “quanta elegância” como diz a mãe ao falar com a filha que caminha em frente ao público num tablado que parece ecoar seus passos, como um contínuo ponteiro que marca os dias, que marca a vida dessas vidas, uma presa à outra, num diálogo que exige longa pausa rítmica do espectador que sempre espera por movimentos agudos ou inesperados. Na leitura de “Ato sem Palavras I”, Yara De Cunto enfrenta o deserto de sua sala de jantar, provocado pela encenação com um grande ventilador que arrasta tudo o que ela constrói, uma estante com partituras soltas, o café, o açúcar, o aparelho de jantar, a toalha de mesa, a bengala, todas inicialmente dispostas e após grande força do vento se destrói pelo espaço e se mistura com o nada, apenas ela permanece dura como uma rocha, agarrada à sua xícara semi-recheada pelo café que lhe restou. O impacto dessa construção imagética é de calar o mais bravo dos falantes, talvez pela força do ar, mas o espectador se obriga a silenciar-SE e sai escutando o que não foi dito.
A Ocupação Sozinhos Juntos, do Coletivo Irmãos Guimarães continua no Sesc Belenzinho até o final de junho, com outros espetáculos, performances e ciclo de palestras. Imperdível!
O título desta postagem se refere à grande manifestação artística que a AntiKatártiKa Teatral, dirigida por Nelson Baskerville, trouxe para sua “1 Gaivota É Impossível Viver sem Teatro”, uma reinvenção da obra “A Gaivota” de Anton Tchekhov, autor russo responsável pelo estímulo de um novo pensamento para o teatro russo do início do século XX, juntamente com o ator-diretor-pedagogo Constantin Stanislavski. Justamente essa revolução onde o autor convoca pela boca do personagem Kóstia a necessidade de se visitar novas formas que a companhia paulista se pauta e inova, abrindo ao público toda a maquinaria por trás da cena e com isso renova o teatro, criando uma linha poética onde o texto é a estrutura base para uma revisão contemporânea. Afinal, onde vivem os clássicos? A resposta está no vigor da encenação e de seus intérpretes. Rever uma obra clássica com um comprometimento artístico detalhado e conservando todos os grandes acontecimentos da dramaturgia original, assim como a poesia de suas palavras, faz com que a inserção de elementos como a música “Demais”, da cantora Maysa, no enredo seja um belo acerto, que comunica com todos os demais vetores para onde Tchekhov nos aponta para a impossibilidade de uma vida sem Arte, pois sem ela não há a abstração de nossos sonhos de maneira concreta.
OE – Eduardo Okamoto
SP Escola de Teatro – Sede Roosevelt – Sala multiuso
Pça. Franklin Roosevelt, 210 – Consolação – Centro.
Telefone: 3775-8600.
Ingresso: R$ 20.
Possui acesso para deficiente. 74 lugares.
Segunda à Quarta: 20h30
Até 24/06
Sopro – Ocupação Sozinho Juntos – Coletivo Irmãos Guimarães
Sesc Belenzinho – Sala de espetáculos 1
R. Pe. Adelino, 1.000 – Belenzinho. Telefone: 2076-9700.
Ingresso: R$ 7,50 a R$ 25.
Possui acesso para deficiente. 50 lugares.
Sexta e Sábado: 21h30 / Domingo: 18h30
Até 14/06 (Sopro) – 28/06 (Ocupação)
1 Gaivota É Impossível Viver sem Teatro
Já finalizou temporada.
E para finalizar essa impossibilidade de vida sem a Arte, chamo atenção para o absurdo que está ocorrendo em Ouro Preto – Minas Gerais – Brasil, onde a Casa da Ópera, a fundação arquitetônica teatral mais antiga das Américas – inaugurada em 1770 –, berço de grandes eventos de nossa história e até hoje espaço de destaque no mundo, por sua beleza externa e interna e tombado pelo Patrimônio Histórico Nacional, se encontra interditada para reparos pelo Corpo de Bombeiros há quase 1 ano em meio à uma negligência da Gestão Municipal atual. Com isso, um grupo de amigos e amantes do espaço, que reconhecem seu valor artístico, iniciaram o movimento #AbreCasadaÓpera, que pode ser facilmente encontrado nas redes sociais e vem ganhando apoio para que uma ação concreta se realize. No último dia 06 de junho, após uma ação popular, foi instalada uma placa para início dos reparos, no entanto, até o momento nada ocorreu. Como tantas placas “inauguradas” em nosso país, exigimos uma fiscalização popular, de denúncia e apuro constante. Minha participação no movimento se configura pela formação cultural que tive neste espaço durante meu período de formação em Artes Cênicas pela Universidade Federal de Ouro Preto, onde lá visitei pela primeira vez com o desejo de ali atuar de todas as maneiras possíveis e tive o prazer de assim o fazer, como ator, como diretor, professor, produtor, curador, formando e agora como manifestante pelo povo de Ouro Preto e para os futuros espetáculos que ainda por lá passarão. Participe dessa ação e também fiscalize seu bairro, sua cidade, seu país! Se não protegermos nossa história agora ela continuará sendo registrada apenas em livros e na memória das pessoas.