Branca Dias:
a pureza do comportamento alijada pelo confessor/julgador em O Santo Inquérito.
Quem cala colabora.
(Fala de Branca Dias)
Não gosto de me explicar antes de escrever. Mas aqui abro uma exceção. É preciso.
Reli (gosto de reler), junto com outros nos últimos meses, um texto do filósofo italiano Giorgio Agambem de nome Pilatos e Jesus. É uma reflexão sobre o “julgar” (krisis, em latim) sob dois vieses, um teológico e outro jurídico-processual do episódio da “entrega” de Jesus ao Império Romano na figura imputada de Pôncio Pilatos.
Leio, como muitas pessoas, livros sobre julgamentos, principalmente aqueles que possam me fazer refletir sobre o papel do julgador diante da ação humana daquele que está sendo julgado. E são casos e mais casos envolventes, animadores, desafiantes, terríveis, emocionantes, injustos, quase sempre ligados às duas personagens protagonistas: quem julga e quem é julgado.
À mente me vieram, durante a releitura do texto de Agambem, Santa Teresa D’Ávila e Branca Dias. Duas mulheres que incomodaram as autoridades eclesiásticas das (e nas) épocas em que viveram – Séc. XVI, Santa Teresa e Séc. XVIII, Branca Dias –, e que tiveram nas figuras de seus confessores homens desconfiados da pureza que elas exalavam.
Ambas agiam de boa-fé. Uma porque professavam – em níveis diferentes – a fé que consideravam “o caminho da verdade”; e duas porque tiveram experiências que as levaram ao Tribunal do Santo Ofício por conta de suas atitudes de salvação.
Pilatos e Jesus, de Agambem, coloca faz tempo “várias pulgas atrás de minha orelha”, já que o embate entre dois mundos na Judéia – o humano/mundano e o divino – de certa forma se reproduzem com Santa Teresa D’Ávila e Branca Dias. Lá, o humano/mundano julgou o divino, e com as duas os representantes do divino julgaram o humano.
Por isso resolvi escrever em três partes minhas reflexões, diante de tão diversificada e importante teia de conceitos e análises possíveis. Tentarei meditar, primeiro a partir do texto de Dias Gomes, como a boa-fé de Branca Dias serviu-lhe de armadilha (já que foi considerada culpada pelo Santo Ofício), primeiro da alma e depois de seu corpo e, na sequência – numa desafiante missão de pensar Teatro e Direito –, como a culpa pode alijar a boa-fé, e como esses dois conceitos integradores da compreensão e de padrão éticos se complementam e se anulam. Não é um estudo alentado, claro, são apenas indicações meditativas, e possivelmente fragmentadas, de um assunto que tem reflexos no nosso cotidiano.
Nos outros dois textos futuros – que não serão necessariamente continuação deste – abordarei essa temática com outras personagens em outras criações teatrais, sempre a relacionando com o mundo jurídico.
Branca, segundo Padre Bernardo, fora o instrumento de Jesus para salvá-lo do afogamento num rio da Paraíba. Feliz por salvá-lo, ela se banhava naquele rio todos os dias – em uma madrugada apenas esteve nua nas águas –, e acreditava que aquela ação salvando o padre trouxe uma satisfação consigo mesma, já que o gesto de amor com seu semelhante criaria o encontro com Deus. Assim Branca não queria agradar a Deus quando tirou o padre desmaiado do rio. Primeiro a satisfação pessoal ligada ao gesto de amor, e aí sim no amor encontrar-se com Deus.
Para Padre Bernardo, Branca foi, em princípio, o instrumento de Deus para salvá-lo. E um instrumento pelo qual a tentação do seu olhar começa também a se expressar nas suas falas… algo que era fugidio à religião e à batina. É notável um diálogo dos dois:
“BRANCA: Vamos lá em casa, o senhor tira a batina e eu ponho pra secar. Posso lhe arranjar uma roupa de meu pai enquanto o senhor espera”.
PADRE (A proposta parece assumir para ele uns aspectos de tentação): Não… isso não é direito…
BRANCA: Por que não?
PADRE: Já lhe dei muito trabalho por hoje. E preciso voltar o quanto antes ao colégio”. (pp. 37-38)
Branca era sorridente, gostava de ler estórias e acompanhar procissão de formigas. Era assim que descobria o mundo, dizia; e Padre Bernardo a via como “um dos tesouros do Senhor”. O que Branca não contava é que o padre havia sido adjunto do Visitador do Santo Ofício, em Pernambuco, que condenara um tal Pero da Rocha porque ele trabalhava aos domingos e negava a virgindade de Nossa Senhora. “Mas ele devia ter culpa”, já que Padre Bernardo “tem o olhar transparente das pessoas de alma limpa. E o Santo Ofício é misericordioso e justo”, afirmara Branca. (p. 42)
Mas a missão de Padre Bernardo era salvar aquela que o salvara no rio, “já que toda criatura humana está em permanente perigo”. (p.46)
Os encontros entre os dois se sucedem, já que Branca, na sua pureza, poderia estar ignorando as tentações que a cercavam. E suas falas são motivo de preocupação ao padre, que começa a prestar mais atenção nas palavras de Branca em relação ao seu noivo e à sua vida do que aquelas que endereça a Deus; e preocupa-se especialmente com o calor que ela sente à noite, quando rolando na cama sem poder dormir vai ao rio para refrescar-se. O texto da peça é sugestivo ao leitor – e àquele que assiste à versão cênica – do pensamento que atrai o padre para aquela moça banhando-se no rio de madrugada. O caminho para o pecado começa a ser traçado na mente dúbia do sacerdote, já que ele próprio pede a Deus que o guie na sua tentação física por Branca, e que a afaste (e a ele) do Diabo.
O prazer de Branca pelo banho no rio; ou por faltar à missa de vez em quando; ou de ter costumes que, segundo ele, a afastavam de Deus, era o que ele precisava para demonstrar que a tentação e o pecado o obrigavam a julgá-la e a castigá-la. Em verdade, a necessidade de punição era por causa dela mesma, já que sua postura e seus pensamentos obrigavam a que ele exterminasse “todas as venenosas plantas da vinha do Senhor, até as últimas raízes”. (p.124)
Branca, até então o instrumento de Deus para salvá-lo torna-se no instrumento do Diabo para tentá-lo. Era preciso mudar isso utilizando o caminho da salvação pelo “Santo Inquérito”.
Sabemos que os tribunais do Santo Ofício tinham como objetivo eliminar aqueles que não eram católicos ou que, de alguma forma, colocassem em dúvida os mistérios e a prática da fé da Igreja católica. Por óbvio que muitos fatores econômicos e/ou ligados à manutenção do poder político, dentre outros, motivaram decisões de reis e rainhas católicos – e da igreja que fortemente os influenciava –, ligadas a flagelos, degredos e morte dos “infiéis”, que acabavam por deixar suas riquezas acumuladas durante a vida à Igreja.
Branca seria condenada por falar a verdade sobre si e sua vida (já que a mentira é pecado), tendo a consciência íntima e subjetiva da ausência do pecado. Diferentemente daquele que ignora suas ações e pode cometer atos contrários ao que pregava a fé católica, ela tem a exata noção do que faz, e assim confronta seus inquisidores num diálogo no qual é pressionada sobre o fato de o avô ser judeu:
“VISITADOR: Acho que ela não sabe, realmente, o que está dizendo.
BRANCA: O que eu não sei é onde os senhores querem chegar com essa estória de meu avô, patacas e azeitonas.
NOTÁRIO: Quando morre alguém, eles passam a noite comendo azeitonas!
PADRE: A pataca que você pôs na boca de seu avô era para ele pagar a primeira pousada, segundo a crença judaica.
VISITADOR: Tudo isso quer dizer, Branca, que seu avô, cristão-novo, continuava fiel aos ritos judaicos. E que os praticava em sua própria casa.
BRANCA: É possível. Se o batizaram à força, era justo…
NOTÁRIO: Era justo? – (Reação dos padres)
VISITADOR: Cuidado com as palavras, Branca!
BRANCA: Uma pessoa deve ser fiel a si mesma, antes que tudo. Fiel à sua crença.
PADRE: Isso basta para alguém se salvar?
BRANCA: Devia bastar, penso eu…” (pp. 105-106)
Padre Bernardo triunfava quando dizia a Branca que se ela acreditava que seu avô judeu se salvara, então todos os outros judeus e os mouros estariam salvos… aquilo era uma grande heresia; assim como tomar banhos às sextas-feiras; ou quando tomou apenas uma vez banho nua por causa do calor, ou ainda quando lhe aplicou respiração boca-a-boca para reanimá-lo. Era o Diabo que a empurrava para o rio, afirmavam os inquisidores. “Mesmo quando me atirei no rio para salvá-lo?”, ela pergunta ao padre. “Já não sei se foi realmente para salvar-me…” foi a resposta.
Visível se torna o enredamento, via linguagem, do que antes era o instrumento de Deus para se tornar o instrumento do Diabo. A pureza e sinceridade de Branca – sem que causasse dano ou prejuízo a quem quer que fosse – a levaria ao castigo, à punição por sua culpa individual, privada. “Não é possível que você não entenda que está perdida se não ceder ao que eles querem, se não confessar e abjurar tudo”, disse a ela seu pai Simão Dias. “Há um mínimo de dignidade que o homem não pode negociar, nem mesmo em troca de liberdade. Nem mesmo em troca do sol”, Branca respondeu. (p. 138)
Sei que me arrisco ao entrar nessa seara, porque no Direito, culpa e boa-fé geraram debates acalorados. Mas como “viver é esse descuido prosseguido”, como diz Riobaldo em Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa, vamos lá.
Provoco: se Branca Dias fosse julgada hoje, sob qual padrão ético estaria subjugada, já que ela, a partir de determinado momento na história de O Santo Inquérito, não mais “aceitou” o padrão da igreja católica por ser-lhe inaceitável ou incompleto? Numa montagem atual, poderia o diretor optar por leitura do texto que fizesse um julgamento integrado no sistema jurídico atual? Se pensarmos que os julgamentos são feitos a partir de atitudes individuais daquele que é julgado, numa privatização da moral, como disse Frei Betto, e não por fatores sociais ou coletivos de uma sociedade repressiva que oferece imoralidades àqueles que preferem ficar no anonimato, como olhar para a atitude de Branca diante de um julgador repressor que não quer ver – por razões impostas pela Igreja e pelos governantes, e por convicção pessoal – a bondade no gesto não-católico, para simplesmente atestar a presença do diabo numa atitude pura?
Falaríamos na culpa da personagem? “Seria enfadonho, inútil e sem significação doutrinária, se transcrevêssemos um sem-número de definições de culpa, numa falsa demonstração de erudição…”, afirmou Alvino Lima em sua obra clássica Culpa e risco, mas a culpa, que se caracteriza em sentido amplo por uma lesão imputável do direito de terceiro, ainda serve de base para análise de muitas ações humanas no nosso sistema jurídico. Dois exemplos: o art. 186 do Código Civil brasileiro prevê que “aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito o causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”; no Direito Penal, de acordo com o art. 18 o crime é culposo quando o agente dá causa ao resultado por imprudência, negligência ou imperícia.
O ato ilícito de Branca, apesar de individual, gerou dano – que é o resultado de sua ação – à Igreja e a seu rebanho, já que propagava heresias. Apesar de sempre ter agido de boa-fé e de não ter mentido (ou seja, dizer o que os inquisidores queriam ouvir), foi julgada e condenada por um ato puro de vontade própria, ao salvar o Padre desmaiado no rio.
Hoje, se não o salvasse, seria acusada de omissão de socorro. Mas… pensando bem, já que o salvamento e a respiração boca-a-boca que fizera no padre para salvá-lo foram obra do Diabo, teria agido em legítima defesa pela moral da Igreja, se o deixasse morrer.
[i] Edições utilizadas: AGAMBEM, Giorgio. Pilatos e Jesus (Trad. Silvana de Gaspari e Patricia Peterle). São Paulo/Florianópolis. UFSC e Boitempo. 2014; D’AVILA, Santa Teresa. Livro da vida (Trad. Marcelo Musa Cavallari). São Paulo. Penguim/Companhia das Letras, 2010; FREI Betto. “O amor como critério moral”, em PELUSO, Antonio Cezar e NAZARETH, Eliana Riberti (Coord.) Psicanálise, direito e sociedade: encontros possíveis. São Paulo. Quartier Latin, 2006; GOMES, Dias. O Santo Inquérito. Rio de Janeiro. Bertrand, 31 ed., 2013; LIMA, Alvino. Culpa e risco. São Paulo. Revista dos Tribunais, 2ed., 1999; MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no Direito Privado. São Paulo. Revista dos Tribunais, 1999.
Jhoni
15 de outubro de 2016 em 3:15 pm
Eu quero muito se ator e meu sonho. Eu tenho. 14 anos e moro. Em rio de janeiro