Fui ver, no dia 11 de abril de 2015, aos quarenta e cinco do segundo tempo, o espetáculo “Conselho de Classe” no Teatro Sesi. Era um fim de tarde de sábado no Centro da cidade do Rio de Janeiro, e as ruas estavam completamente vazias. Por pouco não fui assaltado na bilheteria do teatro. O grupo de pivetes que nos abordou na fila da bilheteria é uma das principais vítimas do abandono social e educacional apresentado na peça que eu veria a seguir. A estreia desta montagem foi em 2013, a tempo de ser docemente criticado por Barbara Heliodora[1], que nos deixou na véspera desta apresentação, a última realizada pelo grupo na cidade. Barbara adorou. Na sua crítica sobre a peça, ela ressalta a importância da temática educacional e a competência do autor e do grupo como representantes do processo de renovação da dramaturgia brasileira: “É um prazer extraordinário o sentido quando se assiste a um espetáculo com o qual se constata que o teatro brasileiro (texto mais espetáculo) está realmente amadurecendo: “Conselho de classe”, de Jô Bilac, em cartaz no Mezanino do Espaço Sesc, como parte das comemorações dos 25 anos da Cia. dos Atores[2], é uma peça bem escrita e de conteúdo relevante, agradavelmente modesta na forma, mais interessante ainda por não ser apelativa, não buscar exageros nem artifícios.”[3] Para quem conhece o som e a fúria de umas das principais críticas do teatro brasileiro, estes elogios podem ser considerados como um reconhecimento de alta relevância.
Giovanni Ramalho Bilac, com apenas 30 anos de idade, já acumula 15 textos montados e cinco prêmios importantes, entre eles o Prêmio Shell 2011 de melhor texto por “Savana Gacial” e o Prêmio APTR 2014 (Associação dos Produtores de Teatro do Rio) de melhor texto por “Conselho de Classe”. Além deste último, que foi montado pela consagrada Cia. dos Atores, Bilac também tem sido escolhido por atores do naipe de Marco Nanini, em cartaz desde 2014 com um dos seus textos mais recentes (“Beije Minha Lápide”), e encenadores como João Fonseca, que dirigiu “O Gato Branco”, escrito por Jô em 2011. Suas principais referências autorais são Nelson Rodrigues, Clarisse Lispector, Agatha Christie e Pedro Almodovar: “São artistas que conciliam humor, tragédia, banalidades, paixão, malandragem e elegância”.[4] Esta conciliação entre humor e paixão me chamou a atenção em “Rebú”, peça encenada pela companhia de Jô (Cia. de Teatro Independente) desde 2009. Neste texto, o autor potencializa a tensão entre o humor patético e o melodrama, através de um refinado texto de estilo romântico do final do século XIX. Em “Conselho de Classe”, ele também estabelece esse tipo ambiguidade, que se torna ainda mais tragicômica por retratar com tanta propriedade a triste realidade da educação pública do país.
Alguns leitores que vem acompanhando os meus textos aqui no site Ator Criador (como a minha mãe, o editor do site e uns três amigos que curtem teatro como eu) já devem ter notado que eu gosto de inserir dados autobiográficos nas minhas resenhas. Nesse caso, lecionei artes cênicas em 2014 no CAp da UERJ (Colégio de Aplicação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro), como professor substituto, para diversas turmas dos ensinos fundamental e médio. Este colégio é considerado superior aos outros da rede pública de ensino em termos de estrutura. Mesmo assim, o CAp encontra-se em uma situação bastante precária: espaço físico empobrecido, baixíssima remuneração (me refiro aos professores temporários, que representam uma significativa fatia do corpo docente da UERJ) e regulamentação totalmente burocrática. Entrei animadíssimo com a oportunidade de dar aula em uma instituição pública pela primeira vez. Pedi demissão ao final do ano letivo, desmotivado e desiludido. Os professores que ficam precisam “tirar leite de pedra”. E tiram. Conheci profissionais com ótima formação, que vão se adaptando a todas as adversidades, alcançando resultados extraordinários dentro daquele contexto. É o caso, por exemplo, da Professora Mariana Oliveira, efetiva do colégio há mais de cinco anos. Ela coordenou, dentro de uma disciplina eletiva, um documentário criado coletivamente por uma turma de alunos do ensino fundamental. O grupo apresenta, através de esquetes e narrativas, um rico panorama da história do teatro mundial, além de levantar um interessante inventário sobre o lugar do teatro na vida dos indivíduos daquela comunidade escolar: alunos, professores, faxineiros, seguranças e outros funcionários. É um material educativo valiosíssimo, como poucas vezes vi, mesmo nos colégios particulares em que leciono.
O espetáculo apresentado pela Cia. dos Atores capta muito bem este quadro de precariedade do ensino público brasileiro. A peça nada mais é do que um conselho de classe, do início ao fim. Quatro bravas professoras e um coordenador novato são os únicos representantes de um corpo docente desinteressado. Começa com uma longa fala em off da coordenadora Vivian. Vítima de um momento de revolta dos alunos, ela se torna pivô da trama. Trata-se de uma personagem ausente, que é citada pelos outros personagens ao longo de toda a história. Este episódio detona um acalorado embate em torno da agressão (ou acidente) sofrida por Vivian. De um lado, a professora de artes Mabel (interpretada por Thierry Trémouroux), incentivou a manifestação dos estudantes contra Vivian, por esta ter dispensado um deles pelo simples fato deste ter ido para escola de boné. Mabel alega que Vivian teve o rosto ferido durante o protesto de forma acidental. Do outro, as professoras de educação física (Leonardo Netto) e de química (Cesar Augusto), acusam Mabel de incitar o vandalismo dos alunos. No meio deste fogo cruzado, surgem a idosa Tia Paloma (Marcelo Olinto) e o jovem coordenador substituto (João Rodrigo Ostrower, que substitui o ator Paulo Verlings nesta temporada).
Na fala inicial da coordenadora Vivian, é possível notar a ambiguidade do seu discurso: bem embasado teoricamente, porém idealizado e preconceituoso. Ela cita o sistema educacional do Japão com adoração, como modelo perfeito a ser seguido. Em seguida, afirma, em tom de lamento, que o Brasil nunca poderá alcançar aquele ideal, pois o seu povo é demasiadamente heterogêneo, com muitos negros e mulatos. A reunião começa com aquelas quatro representantes e o coordenador novato, sendo realizada em uma quadra abandonada empesteada de insetos, no auge do calor carioca do final de dezembro. O ambiente infernal perfeito para que o conselho escolar transforme-se em uma patética terapia de grupo, carregada de momentos catárticos: desabafos desesperados, acusações, discussões que beiram o confronto físico, choros compulsivos, culminando com a crise convulsiva da Tia Paloma, que passa toda a reunião fazendo intervenções esclerosadas, funcionando como contraponto cômico divertido, e verossímil, de toda aquela histeria.
A trama apresenta um equilíbrio de forças complexo e delicado daquelas quatro professoras-guerreiras e do coordenador iniciante. Este microcosmo representa, em alguma medida, a intricada rede das relações de poder do macrocosmo social. Cada uma delas pode ser vista como representante de um determinado grupo social daquele contexto pedagógico: os educadores das artes, que precisam sempre lutar para legitimar o espaço da sua disciplina; os professores que driblam as normas escolares, estabelecendo pequenos comércios para complementar a renda familiar; os funcionários que são considerados verdadeiros síndicos dos colégios, por utilizar os espaços públicos com interesses pessoais e, por outro lado, por ultrapassar as suas atribuições oficiais procurando preservar e defender estes mesmo espaços; as professoras de carreira, idosas, que dedicam uma vida inteira ao magistério, sem o devido reconhecimento; e os jovens pedagogos, que saem empolgados das suas formações acadêmicas e encontram uma realidade educacional desanimadora. São todos personagens reconhecíveis e cheios de ambiguidades. O processo de adaptação àquelas condições hostis faz com que cada profissional descubra pequenas subversões para sobreviver. Todas ali possuem alguma culpa no cartório. Mas todas também têm razão nas suas reivindicações, pois são, em grande medida, vítimas de um sistema educacional atrasado, abandonado e burocrático. Diante de tantas contrariedades, elas não conseguem se ouvir, muito menos se entender. Elas não conseguem realizar avanços significativos diante de tantos problemas.
As professoras são representadas por atores, com roupas e trejeitos de homens. Este efeito de estranhamento, proporciona um descolamento entre intérpretes e personagens, que contribui para a percepção dos mesmos como representantes das suas funções sociais. Por outro lado, expressa um traço de masculinidade forjado na persona daquelas professoras, como forma de imposição e sobrevivência ao meio hostil. Esta opção dramatúrgica, que lembra um pouco o distanciamento proposto por Bertolt Brecht[5], e as misturas de gêneros encontradas em Jean Genet[6], é um prato cheio para este elenco. O tarimbado ator Cesar Augusto faz a professora de química que vende roupas para complementar o ordenado, um tipo debochado e desiludido. A sua atuação é segura, com uma expressão vocal muito agradável. Leonardo Netto representa, de forma econômica e contundente, uma professora de educação física rabugenta. Marcelo Olinto faz a Tia Paloma, a figura com um traço mais cômico. Com uma composição extremamente sutil, ele consegue evocar com clareza e precisão a professora velhinha da escola. Thierry Trémouroux apresenta uma professora de artes combativa de forma bastante convincente. E João Rodrigo Ostrower aproveita bem o ótimo personagem que tenta, pateticamente, domar aquelas feras. Ele constrói um jovem coordenador sério, cheio de ideais, mas que chega ao fim do seu primeiro dia de trabalho atordoado.
Toda a estrutura técnica do espetáculo é bem realizada e adequada, com destaque para o cenário bastante realista composto por Aurora dos Campos. Todas as imperfeições de um colégio público decadente são perfeitamente representados. Os figurinos de Rô Nascimento e Ticiana Passos, a luz de Maneco Quinderé e a trilha de Felipe Storino, completam a ficha com descrição e eficiência. A direção de Bel Garcia e Susana Ribeiro é muito competente e afinada com o texto de Bilac. Elas conseguem equilibrar uma encenação precisa e bem desenhada, com uma dinâmica intensa, repleta de momentos explosivos ou reflexivos dos personagens.
Ficamos na torcida para que este “Conselho Carioca” seja levado para todo o Brasil. Tratando de um tema social muito sério, a peça não é panfletária nem se propõe a apresentar soluções. Como eu falei anteriormente, trata-se de um mergulho profundo em um microcosmo social, que o escancara com muita ousadia, mas também com refinamento poético e senso de humor. Todos nós sabemos que o ensino público do país, embora tenha tido alguns avanços nos últimos anos, ainda é extremamente caótico e deficitário. Acompanhamos estatísticas e discursos políticos oficiais, de defesa ou denúncia, de autoridades que estão muito distantes dessa realidade. Este espetáculo se passa dentro da ferida, no calor de uma quadra abandonada, no calor das emoções de quem vive o conturbado dia a dia do ambiente público escolar.
Saí do espetáculo com a sensação de que aquelas professoras são todas vítimas de um sistema falido. A peça também apresenta algumas atitudes questionáveis das docentes, o que nos leva a pensar que elas também são culpadas por este quadro. Na verdade, elas são heroínas. O professor do ensino público no Brasil é um herói, um verdadeiro guerreiro em campo de batalha. É um agente social com um potencial de transformação importantíssimo, que convive cotidianamente com jovens oriundos de realidades precárias. A formação escolar, coordenada pelos profissionais da educação, é o principal caminho para o processo de democratização das estruturas sociais de um país. Tudo isso é um discurso que já se tornou óbvio e aparentemente sem solução. Por isso, os criadores deste espetáculo possuem um enorme mérito no sentido de aprofundar a discussão e apresentar este quadro de maneira corajosa e original. Que este “Conselho Carioca” sirva de exemplo e ganhe cada vez mais espaço em todas as classes do Brasil!
[1] Barbara Heliodora foi uma das críticas mais respeitadas da história do teatro brasileiro, durante mais de 50 anos, sendo que os últimos 23 nas páginas do jornal O Globo. Reconhecida também com umas das maiores autoridades no país sobre o dramaturgo inglês William Shakespeare, temática da sua tese de doutorado defendida em 1975 na Universidade de São Paulo (USP). Deixa também como legado uma série de traduções teatrais e livros teóricos de sua autoria. Faleceu aos 91 anos no dia 10 de abril de 2015.
[2] A Cia. dos Atores foi formada em 1988, no Rio de Janeiro, pelos atores Bel Garcia, Drica Moraes, César Augusto, Gustavo Gasparani, Marcelo Olinto, Marcelo Valle e Susana Ribeiro em torno do diretor e também ator Enrique Diaz, com o objetivo de suprir uma necessidade de estudar e experimentar novas possibilidades da cena teatral. (fonte: teatropedia.com).
[3] Critica publicada pelo jornal O Globo em 29 de outubro de 2013.
[4] Citação extraída do site Globo Teatro, de 18 de maio de 2011. Outra fonte sobre o autor: www.azulmagazine.com.br.
[5] Bertolt Brecht (1898 – 1956, Alemanha) – foi um dos mais importantes dramaturgos do teatro mundial de todos os tempos. Com uma abordagem totalmente política, era associado ao movimento marxista. O seu Teatro Épico privilegiava o aspecto narrativo do teatro e buscava criar um efeito de distanciamento que possibilitasse ao público acompanhar os espetáculos de forma sóbria e crítica, contrapondo as técnicas teatrais realistas que tinham como objetivo “encantar” a plateia, sem dar espaço para uma observação mais lúcida do espectador.
[6] Jean Genet (1910 – 1986, França) – muito associado ao Teatro do Absurdo (movimento identificado por críticos europeus na década de 1960, como dramaturgias que fugiam aos padrões realistas de criação), Genet tornou-se um ícone do teatro francês com uma obra absolutamente original. Aderindo de forma subversiva alguns aspectos religiosos, seus espetáculos evocavam rituais carregados de conotações sexuais. Seus personagens femininos eram indicados por ele para serem representados por homens, criando um efeito de estranhamento com diversas leituras, entre elas a questão das diferenças, semelhanças e relações de poder entre os gêneros, ou ainda, também como técnica de distanciamento.