Beija-me como nos livros

BEIJA-ME COMO NOS LIVROS | ATOR CRIADOR
A MAIORIDADE DE UMA COMPANHIA CARIOCA

A companhia teatral Os Dezequilibrados, formada nas salas de aula da CAL, completou 18 anos em 2014. Nestas quase duas décadas de existência, o grupo manteve a média de um espetáculo por ano. Com um repertório variado, que vai de textos consagrados de Nelson Rodrigues, a montagens totalmente autorais, passando por adaptações de romances clássicos como “Crime e Castigo”, de Dostoievski. Para comemorar esta longevidade notável de existência, a companhia preparou uma trilogia sobre o amor. Segundo o diretor Ivan Sugahara, este é o ingrediente principal na árdua tarefa de manutenção do “casamento” deste coletivo criativo por tanto tempo.

OUSADIA PÓS-DRAMÁTICA

Completando a trilogia, o grupo estreou em junho deste ano, a peça “Beija-me como nos livros”, que parte de uma profunda pesquisa de nove meses de textos teóricos, peças de teatro e experiências dramatúrgicas, sonoras e corporais. Um tempo de pesquisa absolutamente incomum na criação de um espetáculo nos dias de hoje. Um privilégio possibilitado pela estrutura desenvolvida pela trupe, que vem contando com um patrocínio de três anos da Petrobras.

Dentro da pesquisa, foram eleitos quatro mitos literários, representantes de quatro épocas marcantes na evolução dos códigos amorosos a partir do século XII: “Tristão e Isolda”, representando a idade média na Inglaterra; “Romeu e Julieta”, o renascimento italiano; “Don Juan”, o iluminismo de origem francesa; e “Werther”, o romantismo alemão. Tais mitos foram utilizados de forma fragmentada, mesclando cenas primordiais de cada um deles com cenas inéditas de casais contemporâneos. Trata-se de uma estrutura dramatúrgica tipicamente pós-dramática, onde não há linearidade de acontecimentos, mas sim uma total liberdade na costura entre os diversos fragmentos – sobrepostos, alternados ou mesclados.

Até aí, já estamos falando de uma proposta bastante complexa, de uma amálgama entre quatro referências literárias com todas as suas variações estéticas. Mas o grupo vai além. Cada um dos fragmentos evocados, possui um dialeto próprio criado por eles a partir da sonoridade da língua de cada região. Ou seja, o espetáculo é todo falado em “gromelô”, termo que representa um exercício teatral onde se fala uma língua inventada, mas que deve ser plenamente preenchida de significado. Portanto, a proposta dramatúrgica é complicada e ousadíssima. Apesar desta concepção um tanto cerebral, o diretor e dramaturgo do grupo pede ao espectador, no final do seu texto no programa da peça, que “veja a montagem com o coração”.

As falas dos personagens, quase inteiramente emitidas em “gromelô”, são extensas e, apesar de estarem sempre preenchidas de emoções e significados, tornam-se um pouco cansativas. Como seria se o grupo “retraduzisse” para o português alguns momentos das intricadas tramas apresentadas? Eu gostaria de ouvir as palavras em português de um diálogo estabelecido entre a Julieta de Shakespeare e o homem comum dos Dezequilibrados.

CORPOS FALANTES

Não se pode fruir deste espetáculo de outra maneira, senão “com o coração”. O efeito de estranhamento sonoro/textual empurra a nossa percepção para a uma absorção mais sensorial. Por trás de todo o caos dramatúrgico apresentado, pode-se notar uma estrutura plena de significados na interpretação. Não há uma pausa, um movimento, um grito, ou um segundo sequer, desprovido de sentido. A peça foi toda ensaiada em português antes de ser “destraduzida” para os dialetos criados por eles. Portanto, apesar da língua estranha, as ações são completamente concretas. Além disso, os dialetos não são nada aleatórios (como acontece nos exercícios de teatro), foram precisamente definidos e redigidos pelo diretor vocal Ricardo Góes, que também assina a pesquisa fonética do processo de criação.

Mas o que me pareceu sustentar de fato a complicada proposta e, em diversos momentos, encantar a plateia, é o trabalho corporal dos atores. É claro que o corpo não pode ser dissociado da voz, mas aqui a voz deve ser contemplada apenas como emoção, como repercussão dos sentimentos experimentados e da partitura corporal primorosamente executada pelo elenco: Ângela Câmara, Claudia Mele, José Karini e Julio Adrião – este último voltando a participar de um novo espetáculo depois de se consagrar com o monólogo “A Descoberta das Américas, em cartaz desde 2005.

Duda Maia foi a responsável pela direção de movimento e preparação corporal da montagem. Alguns estilos clássicos de dança são estilizados, e toda a movimentação cênica é cuidadosamente partiturada. Ambas são norteadas por uma concepção corporal poética e delicada. As mãos conduzem os movimentos, empurram os membros corporais, prendem os parceiros e manipulam os livros cênicos, como um estranho e significativo balé de mãos. São essas pequenas ações físicas, carregadas de emoção, que mais comovem o espectador. “Beija-me” também poderia ser visto como um belíssimo espetáculo de dança.

PESQUISA AMOROSA IMPERDÍVEL

Os figurinos de Bruno Perlatto são lindos e levemente modernizados, evocando todos os períodos históricos em questão com beleza e praticidade. O mesmo se pode dizer da luz de Renato Machado e do cenário de André Sanches. Um pouco mais modestos, mas igualmente bonitos e funcionais. A trilha sonora, também concebida por Sugahara, é bem adequada, mesclando standards de músicas românticas contemporâneas e músicas clássicas.

Apesar de toda a complexidade da proposta, faço minhas as palavras do diretor: abra o coração para contemplar esta inusitada pesquisa teatral e histórica do amor. Tanto pela riqueza teórica e conceitual processada pelo grupo, quanto pelo vigoroso trabalho corporal relizado pelo elenco. O Centro Cultural Banco do Brasil e a companhia Os Dezequilibrados mantém, com “Beija-me como nos livros”, a tradição de oferecer espetáculos inovadores e de qualidade.

*Revisão de texto da coluna: Amanda Leal

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Eduardo Katz
Eduardo Katz é ator formado na Uni-Rio, defendeu título de Mestre com pesquisa sobre trabalho autoral do ator Pedro Cardoso. Já trabalhou em teatro com os diretores Amir Haddad, Michel Bercovitch, Moacir Chaves e Wolf Maya; em cinema com José Wilker, Ruy Guerra e Marcos Prado. Participou como ator em programas e comerciais de TV, com destaque para o personagem "Zingo" na série de humor "Adorável Psicose" no canal MultiShow. Trabalhou também como arte-educador no Museu da Vida da Fiocruz e no Museu da Casa do Pontal. Leciona o teatro no Colégio Santo Agostinho no Rio de Janeiro.

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