A cena paulista aponta para algo urgente: Ampliem sua visão de mundo!
Nesta semana de 2ª Mostra Internacional de Teatro na capital paulista, aos que não conseguiram os disputados e quase esgotados ingressos para ver os gringos, deixo impressões de dois trabalhos que me impactaram fortemente no mês de fevereiro.
Luz Negra, musical da Cia Pessoal do Faroeste é um documento histórico para nosso teatro, um espetáculo que nos leva ao passado paulistano sob o ponto de vista do negro ainda moído pelos restos de uma escravidão. O espetáculo, que continua sua temporada até 25 de março, às terças e quartas na Sede Luz do Faroeste, revive a Frente Negra Brasileira em São Paulo e a formação da Boca do Lixo na região da Luz. O cenário é a Rádio Luz Negra, onde a companhia do diretor e dramaturgo Paulo Faria, apresenta um registro de figuras que se destacaram em prol de uma sociedade igualitária. O grande destaque sem dúvida é para a memória de Luiz Gama, um dos principais abolicionistas da história do Brasil, filho de africana livre com fidalgo branco e com família rica, foi poeta, advogado, jornalista e patrono da Academia Paulista de Letras. Gama foi um destaque do movimento social em prol dos negros, como advogado conseguiu libertar mais de 500 escravizados, além de defender pobres de qualquer raça. Esse embate é fluente na São Paulo da década de 1930 retratada no espetáculo, que apresenta o cidadão negro como conhecedor de seus direitos e conscientes de que há uma necessidade de reconhecê-los como grandes realizadores nas áreas das artes, da política e da legislação. O discurso, que pode parecer denso ou cansativo, de maneira alguma se despedaça ao longo dos 75 minutos de espetáculo, que, com maestria envolve o espectador na música executada ao vivo e na performance dos atores. Outro grande destaque é o figurino, de uma classe invejável, com cortes modernos, um desenho que dá ao corpo dos atores uma autoridade sem igual.
A Sede Luz do Faroeste é um lugar possível dentro de uma São Paulo tão absurda, lá temos a oportunidade de viver a cidade sem/com medo/verdade que está nas ruas, não há separação de classes, há uma investigação intensa, com desejo de rever nossa história e aprofundar o dia atual. Luz Negra é tão forte que chega a cegar o mais frágil dos corações.
Outro tema que vem sendo relevantemente abordado por nossa dramaturgia é o da transgeneridade, que no espetáculo Maria que virou Jonas ou a Força da Imaginação, da Cia. Livre, impulsiona o espectador a viver uma experiência que permeia entre o fantasioso e o real. O projeto surge da adaptação teatral dos relatos sobre o caso de Germain Garnier, jovem habitante de Vitry, na França do século XVI, que nascido Marie, salta um buraco e, devido ao esforço de abrir as pernas, vê surgir em seu corpo um membro masculino. Marie é rebatizada como Germain e, a partir de então, aceito socialmente como homem. Seria formidável que como o conto a vida real se estabelecesse, mas não é essa a verdade que andamos acompanhando nas pautas de jornais e redes sociais. A diretora Cibele Forjaz, aponta com sua encenação para uma visão gritante, que desajusta o ambiente, descoordena o espectador e o coloca à prova desde o início do espetáculo. A discussão em torno do binarismo masculino/feminino e todos os padrões que o acompanham são fortemente estabelecidos nesse grande jogo teatral, que permeia entre um doce açucarado e um amargor violento, que me faz lembrar a dor de pessoas transexuais que além de enfrentarem o preconceito diário e latente, precisam se submeter a uma série de provas para serem reconhecidas como são, seja no trabalho, em casa, nas ruas, nas escolas, nas festas e na série de avaliações médicas a que são submetidas para sua readequação sexual. Somos uma sociedade indecente com todos os que ainda são vistos como uma minoria e não temos respeito pelo sentimento de humanidade que fortemente ainda quer se resguardar em nós.
Além de meus devaneios pessoais sobre o tema que é caro, urgente e constantemente necessário de ser discutido, vi no espetáculo uma variedade mágica de possibilidades, um cenário permeado por cabides que carregam formas ou fôrmas de gênero que nos adequamos constantemente, também há uma materialidade no trabalho dos dois intérpretes, Edgar Castro e Lúcia Romano que estabelecem um jogo de troca de gêneros, feito por sorteio de alguém da plateia, indicando quem eles serão naquela encenação: o homem ou a mulher, ou ainda, o que importar ser. O espetáculo brinca com o contemporâneo de maneira que parecemos pertencer a um lugar possível, onde há mudanças que nos perseguem irrefreavelmente. Esteja aberto ao novo e corra porque só vai até dia 15 de março no Sesc Belenzinho.