A 3ª Edição da Mostra Internacional de Teatro terminou no último domingo, 13 de março e entre os espetáculos que assisti, alguns deixaram não só na minha boca, mas na de muitos com quem conversei a pergunta “Isso é teatro?” enquanto outros afirmavam que “Sim, é teatro!”. Como um investigador de territórios para as artes cênicas e entendendo a pluralidade de criações que a MIT SP sempre nos traz, procurei avaliar com olhos distantes do que vi(vi) nos dois últimos finais de semana.
Com uma verba reduzida, reflexo da crise econômica que não existe apenas em nosso país, este ano a mostra contou com 10 espetáculos vindos da França, Polônia, África do Sul, Grécia, Bélgica, Congo, Alemanha e Brasil, um número que apesar de pequeno foi bastante expressivo e gerou uma movimentação grande entre os apreciadores das artes cênicas. A primeira fase desse evento certamente é a tão esperada venda de ingressos, planejada por fãs do evento – como eu – com dias de antecedência, pesquisando sobre os trabalhos, escolhendo as melhores datas, combinando com os amigos, mas a verdade é que a venda foi caótica para muitas pessoas e quando liberada a venda pela internet muitos ingressos já pareciam ter sido vendidos e assim, esgotavam rapidamente e muitas pessoas acabaram ficando sem suas reservas garantidas. Há os que, insistentes, ficaram horas em filas na espera de um assento. Entre alguns relatos felizes e outros nem tanto, é um festival que você precisa se dedicar para saber sobre as vendas e manter uma rede de contatos para conseguir uma entrada de última hora.
Apesar de ter muitas críticas quanto ao sistema de vendas de ingressos da 3ª MIT SP, fico muito feliz por outro lado, pois, tanto espetáculos estrangeiros como tupiniquins contaram com casa cheia e esse reflexo é uma maravilha para nosso teatro. Se questões/comentários pautadas no “Isso é teatro ou não” permanecerem será sinal de que ainda estamos enfrentando territórios novos e que merecem e devem cada vez mais ampliar horizontes. Certamente, a barreira com as estruturas formais de encenação tem sido um investimento claro da curadoria do evento desde sua 1ª edição. Neste ano isso se fortaleceu ainda mais, em espetáculos como Cinderela (Bélgica/França), de Joël Pommerat e (A)Polônia (Polônia), de Krzysztof Warlikowski foram, dentre os que pude conferir, os que dialogaram com efeitos tecnológicos que não podemos mais negar. Claro, dentro de uma equipe e um montante financeiro de qualidade impecável, é possível brincar com diversos elementos e transportar para a cena uma qualidade de som e projeções em vídeo, que não perdem em nada para as modernas salas de cinema que temos espalhadas pela cidade afora.
Em Cinderela, apresentado no Auditório do Ibirapuera, a qualidade da iluminação, som e vídeo certamente deixaram muitos espectadores boquiabertos. Casado a uma sensibilidade natural, que em muito dialogava com uma estética advinda do cinema francês, a protagonista Sandra, a jovem Cinderela contemporânea não vivia um conto de fadas como a dos desenhos animados, mas provocou o imaginário com suas fantasias concretas, lembrar-se da mãe morta a cada cinco minutos, não permitindo que sua vida real se manifestasse, aceitando assim todas as excentricidades da nova mulher de seu pai, acompanhada de suas novas meia-irmãs. O conto de fadas contemporâneo de Pommerat exibe o ser humano desprezível, suscetível ao horror de uma dor silenciosa, ainda que carregada de emoção e riso. Ver a imagem dessa nova mãe, a madrasta dos desenhos animados, como uma doente sedenta por auto-exposição, fechada com suas filhas numa casa de vidro é como ver nossas reais famílias de classe média alta, encerradas em suas fantasias particulares, enquanto Sandra, a Cinderela de Pommerat aceita o porão escuro e sem janelas como seu lugar de descanso, de solidão. A imagem mais forte desse espetáculo certamente foi o final sem gosto de feliz, mas suscetível aos acontecimentos: a madrasta sozinha com suas filhas, o pai que se casa com uma nova e boa mulher, a Cinderela, sempre chamada de “moça muito jovem” pela narradora, deixa o príncipe e faz um pedido para a fada, que escute novamente as últimas palavras de sua mãe ao morrer. A mãe disse na verdade para que não a esquecesse e que para que permanecesse sempre viva dentro dela deveria viver, enquanto a moça muito jovem entendeu equivocadamente que para não esquecê-la devia se lembrar dela a todo o momento. Além da poesia da dramaturgia também assinada pelo diretor, havia a impressionante qualidade de som, luz e vídeo, que por vezes permitia criar um ambiente em perspectiva que relembrava grandes salões, onde perdemos a vista em sua infinitude.
Em (A)Polônia a tecnologia era suporte para criar realidades diversas como duas grandes caixas móveis – gigantescos aquários – preservavam estados humanos e o dilaceramento da culpa, o perdão e a vingança, o mito e a história, a família e o destino, o amor e a morte, o sacrifício e a covardia, elementos que foram criados a partir de uma revisão dos textos da tragédia grega clássica Alceste, de Eurípedes e Oresteia, de Esquilo e o contemporâneo Apolonia, de Hanna Krall. A jornada de quase 4 horas era permeada entre o discurso épico, a manipulação de bonecos crianças, a presença forte de uma banda ao vivo entre cada uma das muitas peças trazidas na trajetória, além de um estado recorrente em tom de palestra. O elemento trágico presente nos clássicos gregos selecionados para a obra, se diluía em contrapontos atuais, utilizando recursos como um talk show via web entre as personagens Clitmnestra, Apolo, Athena e Orestes, em ambientes secretos, mas que com a internet nos faz transpor as barreiras e com isso o trágico se minimiza. Ao final da jornada espetacular ficou o cansaço, mas o registro de um país que viveu uma das maiores catástrofes promovida pelos homens e que até hoje se faz necessária voltar à pauta dos direitos reconhecidamente humanos, o Holocausto.
100% City é uma criação do coletivo alemão Rimini Protokoll, formado por Helgard Haug, Stefan Kaegi e Daniel Wetzel, que realiza em várias cidades do planeta um estudo preliminar sobre a realidade vivida por sua população e convida 100 habitantes de cada local para vivenciarem sua experiência. Em 100% São Paulo os protagonistas eram moradores da capital desde a nascença, advindos de países estrangeiros ou outros estados e cidades do interior, além de jovens, idosos, crianças, adultos de variadas faixas etárias, classes sociais e gêneros – apenas habitantes reconhecidos como homens e mulheres. Com esse elenco de pessoas comuns, um painel de perguntas como as do Censo Demográfico que recebemos em nossas casas de anos em anos – nem sempre o recebemos em nossos lares, mas fazemos parte dele – são respondidas dentro de um espaço cênico em que o corpo enquanto partícula de uma massa se move para dar resposta a questões postas como: Quem ainda mora na casa onde cresceu? Quem é a favor das ciclovias? Quem estudou em escola particular? Quem é a favor do Bolsa Família? Quem já sofreu estupro?
A partir de uma projeção dessas 100 pessoas que se deslocavam dentro de um grande círculo verde no palco, produzida pela transmissão de uma câmera posicionada no urdimento do Theatro Municipal, assistíamos as respostas desse questionário se separarem entre os lados do Sim e do Não e assim, como espectadores, fazíamos parte desse espetáculo-performance-pesquisa e por vezes vimos ali o reflexo do paulistano, que é carregado de incoerências, desejos, fortes desejos, medos, esperança por uma cidade mais segura e que é apaixonado pela cidade em que vive. As perguntas foram exploradas de maneira envolvente, percebia que o grupo de não-atores ali presentes, ganhava naquele que é um dos palcos mais tradicionais e importantes do país o direito de manifestar seu ponto de vista. Essa estatística viva emocionava os espectadores que se impressionavam com pessoas à favor do retorno do militarismo no país e também protestavam, fossem vaiando ou aplaudindo esta ou outras perguntas como: Quem já teve/está em tratamento de câncer? Quem já pagou para fazer sexo? Quem se sente representado por nós? Esta talvez uma das perguntas que mais me colocou enquanto cidadão no palco com aquelas pessoas anônimas, senti com essa pergunta o quanto faço parte de uma estatística sem respondê-la, mas que, em muitos casos me aplico e noutras sou extremamente contra.
100% São Paulo foi um dos trabalhos onde se questionou a teatralidade. Escutei “Isso não é teatro!” E me pergunto, por que não seria teatro? Afinal, essa arte nasceu da necessidade de um povo falar sobre seus feitos, sobre suas vitórias e seus mitos. Se mergulharmos nas origens no teatro sob a ótica da Grécia Antiga temos a ágora como espaço onde as pessoas se reuniam para discutir a política, realizar suas vendas e compras, a assembleia dos homens se instaurava num espaço aberto e ali se desenvolvia o pensamento. 100% São Paulo no Theatro Municipal de São Paulo com 100 habitantes desta mesma São Paulo representou dentro de uma proposta dramatúrgica – via perguntas – num espaço de cena, com efeitos de luz, som e representação, os papéis que os atores representam, então, por que não é teatro? Não seria justamente esse o jogo que a 3ª MIT SP quis provocar em seu público? A de que temos o teatro como força política, onde ainda é possível explorar a liberdade de expressão sem a guerra e sem o sangue. Certamente foi um trabalho que ensinou muito a todos nós. Merecia uma temporada fixa nesta e em diversas cidades de nosso país.
An Old Monk (Bélgica) é o monólogo que Josse De Pauw divide com uma banda de jazz para dançar a vida e suas memoráveis surpresas. O corpo desse artista, que também era personagem de si mesmo, contava sobre seus passos entre a fase juvenil dos quinze, dezesseis, dezessete, dezoito, dezenove, vinte anos e a vitalidade que o levava para a dança como mola para uma vida que fluía, assim como a música. O jazz tem uma característica inebriante, como o efeito do álcool onde, quanto mais se consome mais parecemos estar num lugar sem resposta, mas carregado de questões como “Por que eu não fui vê-lo naquele momento? Por que eu deixei aquele instante passar? Agora fico aqui com minha dança e não quero mais falar sobre isso, só lembrar e dançar e dançar e dançar.” – o trecho entre aspas não é uma parte do texto falado pelo criador do espetáculo, mas certamente comunga em essência com o que ali se mostrou. A grande harmonia de dança, fala, cena e música estavam envolvidas pela criação/legado que Thelonious Monk deixou para ao jazz, que vivia na banda ao vivo, que conversava com o intérprete em seus passos e que marcavam juntos uma biografia particular, como se o espectador tivesse a oportunidade de ver um grupo de artistas contando uma história única, do homem que atravessa a vida com paixão, desilusões, entrega às dores e à mediocridade do olhar do outro quando envelhecemos e uma vez mais nos tornamos crianças. An Old Monk foi o encontro com o monge sagrado que há em nós.
A 3ª MIT SP acabou mas deixou ainda espetáculos brasileiros que permanecem em cartaz, como é o caso de A Tragédia Latino Americana e a Comédia Latino Americana – Primeira Parte: A Tragédia Latino Americana, projeto da Ultralíricos 5 com direção de Felipe Hirsch, que está no Teatro Anchieta do Sesc Consolação de 17 de março a 17 de abril e Cidade Vodu, do Teatro de Narradores, com direção de José Fernando de Azevedo que volta de 7 de abril a 29 de maio na Vila Itororó Canteiro Aberto SP.