Viúva, porém honesta em tempo de eleições

Foto divulgação da peça Viúva, Porém Honesta pelo grupo pernambucano Magiluth

Na terça-feira da última semana, fui convidada por uma amiga de Recife, que está passando dias a trabalho em Sampa, para assistir à peça de uns amigos conterrâneos dela. Como sou apaixonada por Nelson Rodrigues – citado até mesmo na minha dissertação em Biotecnologia – topei.

Participante da 17ª edição do Palco Giratório, projeto da rede SESC de intercâmbio e difusão de artes cênicas, o grupo pernambucano Magiluth apresentou Viúva, porém honesta nos dias 26 e 27 de agosto, no SESC Santana, em São Paulo, uma das mais de 120 cidades que estão recebendo as companhias participantes nesse ano.

Apesar de jovem – comemorando 10 anos em 2014 – Magiluth é considerado um dos principais e mais influentes grupos teatrais nacionais, sendo contemplado com vários prêmios. Quem estiver em alguma das cidades que vai receber o grupo, não deixe de assistir!

Ao entrar no teatro, parece que não há muito segredo: os atores já estão no palco, cerca de 15 cadeiras com adereços praticamente delimitam o espaço cênico, alguns ternos pendurados, a mesa de luz e sonoplastia no palco… Somente parece! Muita coisa estava por vir. Os atores estão à vontade, conversam e riem enquanto o público entra ao som da voz de Nelson Rodrigues. Um deles se distancia, pega o microfone, apresenta-se como o diretor, faz agradecimentos e avisa que a peça vai começar. Então, uma transformação hipinotizante acontece: o clima descontraído é quebrado pelo aquecimento dos atores, que realizam um trabalho corporal incrível. Mas, durante todo o espetáculo, descontração e o trabalho corporal caminham juntos. “A farsa deve sua eterna populariade a uma forte teatralidade e a uma atenção voltada para a arte da cena e para a elaboradíssima técnica corporal do ator”, é o que Patrice Pavis explica no seu Dicionário de Teatro.

Viúva, porém honesta, a “farsa irresponsável em três atos”, como descreveu Nelson, pela disposição do cenário, torna-se um jogo; pela naturalidade e confiança dos atores no palco, torna-se uma farra. Apesar do palco italiano, a plateia se sente parte e cúmplice da “bagunça” e fica livre para rir e aplaudir em muitos e muitos momentos. Chegam a ser momentos de epifania, como descreveu um amigo.

Formado somente por atores, o grupo se reveza em todos os papéis, inclusive nos femininos, sendo cada personagem facilmente reconhecido por adereços específicos e pela habilidade gestual, certamente resultante de muito estudo, técnica e talento. Até o diretor, que fica por conta da parte técnica, operando a luz e o som em cima do palco, acaba assumindo alguns papéis. A forma tão simples e tão inteligente de se contar essa farsa poderia ser extrapolada para vários textos, servindo até mesmo para as peças infantis – tirando os objetos de sex shop, claro.

São utilizados microfones, luzes estilo boate, fumaça – em alguns momentos muuuuita fumaça, que quase sufoca um dos atores, proposital e debochadamente – e todos assumem a montagem e desmontagem dos personagens. Assumem também os tombos acidentais, causados pela “materialização” da expressão “batata”, marca registrada de Nelson Rodrigues. Ainda hoje, passando pela feira de domingo no meu bairro, lembrei-me da peça e ri sozinha ao ver várias batatas espalhadas pelo chão. “Tenho uma memória batata!”. Também pensei que o Ator Criador não poderia ficar sem a impressão dessa peça. O espetáculo é diversão, com músicas nada convencionais, sendo impossível não sair cantando “É bom para o moral” depois de ouvir Rita Cadillac – que, por sinal, também mora no meu bairro – tantas vezes.

Há quem diga que a peça foi um desabafo de Nelson contra diferentes profissionais, principalmente os críticos teatrais. “Que é falsa a família, falsa a psicanálise, falso o jornalismo, falso o patriotismo, falsos os pudores, tudo falso!”. Nela, o homossexual e fugitivo da FEBEM Dorothy Dalton é transformado em crítico de teatro e escolhido para se casar com Ivonete Guimarães, filha do patrão, o Dr, J. B., dono do Jornal “A Marreta, o maior jornal do Brasil”. Encenada pela primeira vez em 1957, a peça é atemporal, tratando de um Brasil corrupto, cheio de moralismos e hipocrisia. Mais uma vez recorrendo a Pavis: “Graças à farsa, o espectador vai à forra contra as opressões da realidade e da prudente razão; as pulsões e o riso libertador triunfam sobre a inibição e a angústia trágica, sob a máscara e a bufonaria e a ‘licença poética’”.

E, depois de sairmos extasiados e muito falarmos sobre o espetáculo – na saída, na rua, no metrô… – seguimos ao boteco da esquina e, cômica e tragicamente, o debate político, que estava sendo exibido na televisão, tomou o lugar dos comentários.

DR. J. B. — Ponha o Brasil à beira do abismo, seu Pardal!
PARDAL — Outra vez?

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Jacqueline Mazzuchelli é Bióloga / Mestre e Doutoranda em Biotecnologia / Atriz / Operadora de Luz / Performer / Mineira e Paulista.

1 Comentário

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    waltherfornaciarineto

    3 de setembro de 2014 em 10:52 pm

    Gostei dessa impressão!

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