Um de Nós, a saga quase olímpica de um judoca iraniano

A arte do judô e do ator misturadas em um vigoroso espetáculo

É com grande satisfação que escrevo a minha primeira colaboração para o site de artigos teatrais “Ator Criador”. Faz um lindo dia de verão aqui no Rio de Janeiro, com céu azul e muito calor. Assim começo a reescrever as minhas reflexões artísticas, atividade que venho desenvolvendo de forma muito esporádica desde que defendi a minha dissertação de mestrado em 2009. Espero retomar esta prática de forma mais regular contribuindo mensalmente para este site com a coluna “Criador Carioca”.

Acredito ter escolhido um espetáculo muito adequado para inaugurar a coluna: “Um de Nós – A saga quase olímpica de um judoca iraniano”, projeto do jovem criador carioca Pedro Monteiro, um ator criador que acaba de estrear o seu terceiro projeto: “Em 2007, saí da Escola de Artes Dramáticas e comecei a ter o desejo de realizar os meus projetos. (…) A primeira foi a peça `Os Ruivos`, que estreou em 2008, fez mais 200 apresentações por 10 estados do Brasil. Ela, através do humor, trazia uma reflexão  sobre a diferença e o preconceito. A segunda foi o musical `Funk Brasil – 40 anos de Baile`, que estreou em 2012, fez mais de 100 apresentações (…). O musical presta uma homenagem ao Funk e propõe a reflexão: se o preconceito é com a música, ou com quem a ouve. E agora chegou a hora de falar de um sonho! Um sonho de um homem como qualquer `Um de nós`.”[1]

Ao entrar no espaço cênico da peça no Teatro Maria Clara Machado, temos a sensação de estar entrando em um ginásio onde irá acontecer uma competição ou algum tipo de ritual de artes marciais: plateia em arquibancada em forma de semi-arena, placas de patrocinadores acima e em torno desta, um tatame profissional ocupando toda a área de representação, uma fachada repleta de quimonos suspensos em fios de aço com um quadro do mestre Jigoro Kano em destaque e uma ambientação sonora de público em ginásio esportivo. Este belo espaço cênico realizado por Natália Lana nos transporta para o universo das lutas e competições esportivas e é utilizado até o final da apresentação, tanto de forma literal quanto de forma poética no desenrolar da história de Arash, o judoca iraniano.

O elenco de cinco atores-judocas invade a cena apresentando uma grande sequência de aquecimentos físicos específicos do judô com contagiante energia. Executados de forma coreografada, com a precisão e a consciência corporal de um grupo de atores, essa movimentação ganha o status de uma dança contemporânea, poética e vigorosa. Contribui para isso a ótima trilha sonora composta por Marcelo Alonso Neves – além dos momentos de ambientação sonora de arenas esportivas, a trilha sonora enriquece muitos momentos coreografados e intensifica outros de maior carga dramática. O ritmo, a precisão, a sincronização, os rolamentos, os saltos e o estouro das quedas causam frisson na plateia. O elenco mergulha de cabeça na proposta, literalmente. Este entrelaçamento entre a corporalidade do judô e a consciência corporal dos atores em cena foi o que mais me encantou. A preparação deste elenco incluiu um treinamento exaustivo de judô com os mestres Giovanni Cupolillo e Renan Isquierdo, que transmitiram para o grupo os saberes milenares desta arte marcial que prima por um aprimoramento nas técnicas de pegada, utilização e observação do próprio corpo e do oponente como pontos de apoio para a realização de alavancas, ou seja, da sabedoria de transformar o muito pesado em levíssimo. De derrubar o adversário tirando-o do seu centro de equilíbrio ereto, sem força e com inteligência. E, por outro lado, ter base para resistir à técnica do oponente e manter-se de pé.

Este saber agrega uma qualidade ao trabalho corporal dos atores que foi explorado com grande originalidade pela diretora de movimento Nathália Mello. O espetáculo é todo permeado por essa qualidade, em alguns momentos de forma mais evidente como quando o pai de Arash expõe uma espécie de desprezo pelo filho através de pequenas rasteiras que o derrubam; ou em um momento romântico de uma dança com ritmo latino, que sofre uma sutil adaptação no contato entre o casal – as mãos, ao invés de repousarem no corpo do outro, se prendem com firmeza no quimono do “oponente-amante” como uma pegada de judô. E na sequência desse encontro romântico acontece, a meu ver, o auge do casamento entre judô e teatro na peça: o casal, formado por Pedro Monteiro e Gabriela Estevão, representa uma primeira noite de amor com movimentações de alavanca no solo, ao mesmo tempo vigorosas e delicadas, como um encontro sexual de um casal apaixonado. É um momento belíssimo. Gabriela, como única atriz do elenco de cinco atores, tem uma participação essencial no espetáculo. Assumindo os papeis de mãe e depois de esposa de Arash, ela evoca a proteção de uma mãe iraniana e a sensualidade de uma mulher latina. Apesar da sua pouca estatura e aparente fragilidade ela luta e treina com os homens do elenco de igual para igual, com a mesma intensidade e precisão.

Cabe comentar aqui os figurinos que possivelmente propiciaram aquela sutil adaptação da dança latina. Assinados por Roberta Tozato, estes são basicamente compostos por quimonos, com pequenas e espertas modificações para caracterizar diversos personagens: a parte de cima do quimono amarrada na cintura como uma saia dá feminilidade à esposa do judoca iraniano; a faixa pendurada em um dos ombros expressa a religiosidade do seu pai, etc. Isto contribui para uma interessante concepção proposta pela diretora Joana Lebreiro, que encontra unidade entre todos os setores do espetáculo ao resolver tudo mergulhando sempre na estética do judô – nos quimonos que se desdobram em vários figurinos, na movimentação geral estilizada pela luta e na influência dos aspectos ritualísticos das artes marciais. Cabe destacar aqui a sua contribuição no aspecto memorial do espetáculo. Autora de uma pesquisa de mestrado sobre memória, além de ter dirigido alguns espetáculos que priorizam este aspecto, é nítida a sua colaboração neste sentido. Logo nas suas primeiras falas, o ator Pedro Monteiro, co-autor do texto da peça junto com Joana e Marcus Galiña, narra os vestígios de memória (que deram origem a peça) que ficaram daquele depoimento do judoca iraniano que ele viu enquanto zapeava a tv de madrugada há sete anos atrás. A forma como ele lembra e os vestígios que ficaram ganham lugar no texto e na cena. Outros depoimentos de judocas olímpicos também enriquecem o texto ao longo da apresentação.

Uma pequena ressalva talvez possa ser feita no que diz respeito ao andamento da parte final do espetáculo. Perde-se um pouco o ritmo contagiante alcançado desde o início da peça por um excesso de detalhes das mazelas do lutador, que ficam um pouco repetitivas. É comovente toda a sua história de superação, mas na parte final, quando ele volta a treinar, isto se torna um pouco cansativo. Uma “barriguinha” no “tanquinho” dos atletas. Os atores Lucas Oradovschi, Jorge Neves e José Wendell também são imprescindíveis ao espetáculo, revezando-se com grande versatilidade em diversos personagens e mergulhando na teatralização do judô de corpo e alma. Os cinco formam um coletivo artístico e esportivo harmonioso e muito bem integrado. A iluminação criada por Daniela Sanchez compõe muito bem os inúmeros ambientes evocados na internacional trajetória de Arash.

Para concluir quero ressaltar a escolha do tema feita por Pedro Monteiro. Como ele destaca no programa da peça e nas suas narrativas em cena, por trás da história sobre um judoca iraniano existe uma história de inúmeras quedas, superações e, no final das contas, do reconhecimento de limites. O judô é colocado como uma bela metáfora da vida, como a arte de saber cair e levantar. Antes do “ippon”[2] que todos nós levaremos da vida afinal, cada queda é sempre um novo recomeço, uma oportunidade para aprender a ter mais base, a se movimentar melhor e a conhecer melhor os pontos de desequilíbrio dos nossos adversários. Não apenas adversários no sentido literal, mas principalmente adversidades. E quantas são as nossas na vida artística? Quantas quedas levamos até emplacar um projeto, até ser aprovado num teste, até realizar um sonho? E quantos sonhos ficam pelo caminho? Pedro nos comove lembrando quantas vitórias existem por trás de uma derrota. É preciso reconhecê-las, é preciso se dar a medalha de ouro do esforço de uma empreitada, do suor e das lágrimas derramadas. E até mesmo a medalha do reconhecimento de um limite.

Este espetáculo sobre a história de um grande atleta iraniano, que sofreu com as radicalizações ideológicas de um país muçulmano, estreou quase no mesmo dia do terrível atentado atribuído a muçulmanos extremistas, que matou importantes cartunistas na redação do jornal satírico francês Charlie Hebdo[3]. Fica uma tristeza e uma frustração muito grandes diante de um gesto de crueldade tão terrível com artistas que utilizavam o humor como forma de crítica social e expressão. A boçalidade xiita parece ter vencido a inteligência artística. Mas a “estreia de Arash” no teatro carioca ameniza um pouco essa revolta. A saga deste incrível atleta de origem mulçumana, contada com tanto ardor por este coletivo de atores, nos comove e nos renova a esperança. A cultura mulçumana deve ser preservada da interpretação equivocada de certos grupos extremistas. O seu povo é repleto de grandes heróis como Arash, que também lutam pela liberdade e pela realização dos seus sonhos. Eles são como qualquer um de nós. E que nós sejamos tão perseverantes como eles e como o grupo que criou esta peça. Viva o judô, viva o teatro, viva a arte, viva cada “Um de nós”!

 O espetáculo “Um de Nós” estreou dia 8 de janeiro e vai até o dia 10 de fevereiro de 2015. Está em cartaz no Teatro Maria Clara Machado, dentro da Fundação Planetário.

Onde: Teatro Maria Clara Machado. Av. Padre Leonel França , 240 – Gávea.  (21) 2274 7722

Quando: sexta a segunda às 21h00; terças às 19h00 e às 21h00.

Quanto: R$ 30,00 (inteira), R$ 15,00 (meia) e R$ 10,00 (lista amiga). *Não aceita cartões.

Horário funcionamento bilheteria: a partir das 15h.

Vendas antecipadas: www.ingresso.com  

Duração: 1h/10min

 

[1] Texto de Pedro Monteiro extraído do programa do espetáculo.

[2] Golpe perfeito que finaliza uma luta. Quando se joga o oponente com as costas inteiras no tatâme.

[3] A peça estreou no dia 8 de janeiro de 2015. O atentado a redação do Jornal Charlie Hebdo ocorreu no dia 7 de janeiro de 2015 em Paris.

Eduardo Katz
Eduardo Katz é ator formado na Uni-Rio, defendeu título de Mestre com pesquisa sobre trabalho autoral do ator Pedro Cardoso. Já trabalhou em teatro com os diretores Amir Haddad, Michel Bercovitch, Moacir Chaves e Wolf Maya; em cinema com José Wilker, Ruy Guerra e Marcos Prado. Participou como ator em programas e comerciais de TV, com destaque para o personagem "Zingo" na série de humor "Adorável Psicose" no canal MultiShow. Trabalhou também como arte-educador no Museu da Vida da Fiocruz e no Museu da Casa do Pontal. Leciona o teatro no Colégio Santo Agostinho no Rio de Janeiro.

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