Uma faca cravada na garganta

Ainda é preciso tratar esse espaço como uma abertura desta coluna, pois ainda me pego refletindo sobre como habitá-la. Quando penso em Leitura e Escritura da Cena, não consigo escapar do desejo de lidar com essa tal “cena” pensando ela como palavra, desse modo imaginei também que aqui poderia ser um lugar para expandir a fala para outros tipos de formas onde o teatro está além (ou aquém) do palco.

Eu gostaria de falar sobre as publicações sobre teatro também, gostaria de conversar por aqui com essas milhões de pessoas que também estão pensando ele, seja através de livros, de cartas, de falas ou de qualquer outra forma.

E para começar adentrando este espaço, eu me aproximarei do texto Incêndios, de Wajdi Mouawad, autor libanês obrigado a abandonar seu país em 1976 devia a guerra civil, e que desde 1991 reside na cidade de Quebec, Canadá. Estreou o espetáculo Incêndios em 2003, como parte de uma tetralogia iniciada em 1997.

No Brasil o texto foi montado pelo diretor Aderbal Freire-Filho, com a presença da atriz, Marieta Severo, e outra montagem mexicana, da Cia. Tapioca Inn, foi trazida pelo Sesc para a participação no Festival Mirada, de 2012 e contou com uma temporada no segundo semestre de 2015, no Sesc Pompéia. O texto traduzido para a montagem brasileira foi publicado pela Editora Cobogó em 2013, na tradução de Ângela Leite Lopes. E além disso, foi adaptado para o cinema em 2010, dirigido por Denis Villeneuve, indicado ao Oscar de melhor filme estrangeiro em 2011.

Há muitas formas de se entrar em contato com esta dramaturgia. E é algo que recomendo vivamente.

*Antes de poder enfim entrar onde quero entrar é preciso dar um alerta: Tudo o que posso dizer sobre esse texto corre o risco de estragá-lo, pois este é daqueles textos em que a narrativa é algo fundante e qualquer coisa a ser revelada pode acabar diminuindo a descoberta final – o famoso spoiler. Por isso vou entrar, como digo, pelas portas do fundo, desmontando, quase criando algo novo a partir de algo que existe, numa tentativa de se estabelecer um diálogo.

Após a morte de sua mãe, Nawal, os gêmeos Simon e Jeanne são incumbidos a buscar seu pai, que eles acreditavam estar morto, e seu irmão, de quem jamais ouviram falar. E a partir daí eles são obrigados a entrar no labirinto da história de sua mãe e da história de sua própria concepção, um mergulho que se torna a cada momento mais vertiginoso e cada vez mais perigoso.

NAZIRA – Vão me enterrar daqui a dois dias. Vão me colocar na terra, com a cara virada para o céu, sobre o meu corpo eles vão lançar, cada um, um balde de água, mas eles não vão marcar nada sobre a pedra pois nenhum deles sabe escrever. Você, Nawal, quando você souber, volta e grava meu nome sobre a pedra: “Nazira.” Grava meu nome pois eu cumpri as minhas promessas. Estou indo embora, Nawal. Para mim, está terminado.

Nós todas, nossa família, as mulheres da nossa família, estamos presas numa teia de raiva há tanto tempo: eu estava com raiva da tua mãe e tua mãe está com raiva de mim e também de você, você está com raiva da tua mãe. Você também vai deixar pra tua filha a raiva como herança. É preciso quebrar o fio. Então aprende. Depois vai embora. (…) Leva com você e te extirpa disso aqui como a gente é extirpada do ventre da mãe. Aprende a ler, a contar, a falar: aprende a pensar. Nawal. Aprende.”

(MOUAWAD, Wajdi. Incêndios, págs 48-49. Cobogó. 2013) 

Estas são palavras da avó de Nawal, e talvez tudo nasça destas palavras – a busca de um nome, pra por sobre a pedra, pra se continuar uma história.

Esta é a teia da história de uma mulher, Nawal, que um dia ama, um dia tem um filho, um dia perde o filho, um dia sai de sua aldeia, um dia aprende a escrever, um dia volta, um dia põe o nome da avó sobre a pedra e um dia saí em busca do filho que perdeu.

Esta também é a história de dois irmãos, filhos de uma mulher que deixou de falar, de uma mulher que não conseguiu contar sua história para eles, que um dia morre e os manda encontrar seu pai e seu irmão, a história de dois gêmeos que descobrem o segredo de sua origem, gêmeos que um dia vão aprendendo os verdadeiros nomes, do seu pai, do seu irmão, e os seus próprios.

Nawal, numa carta a cada um dos seus filhos gêmeos pergunta onde será que começa a história deles, começa no dia do nascimento, ou começa no dia de sua concepção do seu pai. O ponto de onde se escolhe começar a contar a nossa verdadeira história a muda completamente. E essa história é uma faca cravada na garganta.

Ele nos emudece, ela nos impede de engolir, ela nos impede de formular as palavras em voz alta. Mas é preciso arrancar essa faca? Não, e às vezes nem mais é possível. O que fazer com essa faca depende de quem conta história, de como se conta a história. E Incêndios talvez seja a história de personagens com uma faca enfiada na garganta, alguns sabendo disso, outros não, mas a história de personagens que se atiram (ou são atirados) na busca de formular seus próprios pontos de início.

E há sempre uma ressonância trágica numa busca cega pelo ponto do início, pois, em algum lugar podemos ouvir soar o mito de Édipo, que em sua busca desesperada pelo responsável pela peste de Tebas acaba se tornando vítima e algoz. Édipo, como Nawal, buscava alguém, um nome. Ao ter a verdade, Édipo se condena ao desterro, fura seus olhos e segue sua errância sobre a terra. Nawal, ao contrário, se condena ao silêncio e a imobilidade, e nele habita até o final dos seus dias.

Nawal não podia contar a história a seus filhos, ela precisava mostrá-la, eles precisavam descobri-las. Os gêmeos precisam crescer, precisam aprender a ler, a contar, a falar: aprender a pensar. Nawal ainda usa as palavras, Nawal apenas deixa de usar a voz. A sua história continua na busca dos seus filhos.

E essa história não é apenas a história de indivíduos, essa também é a história de um povo, é a história de um momento de um povo. Estas personagens estão imersas dentro de uma guerra civil da qual só vemos os seus resultados. Não vemos as ruínas de pedra e areia, mas somos capazes de ver a ruína das pessoas, a ruína da família, a ruína de uma história. Vemos essas figuras se debatendo e transformando todas as cinzas em afeto, o afeto possível, um afeto complexo e quase questionável, porque talvez não se conte história alguma se não contá-la com amor. O amor possível, um amor fosco, um amor resistente.

Não vou dizer aqui que exista alguma espécie de destino atrelada à história dessa mulher e de seus filhos, nem à história deste lugar. O destino nunca dá as caras na palavra de seu autor, mas, de certa forma é impossível não pensar nele, na sua força um tanto cruel e um tanto inexorável. Porque talvez o destino não seja onde se culmine a história, mas esteja no legado da busca de um nome, para se por sobre a pedra, para se continuar uma história.

Vinicius Garcia Pires
Vinicius Garcia Pires é graduado em Artes Cênicas, habilitação de Interpretação Teatral, pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo – ECA. Integrou a 5a Turma do Núcleo de Dramaturgia do Sesi-British Council. Atua, escreve e colabora em diversos trabalhos, destaques para: DO FIM DO MUNDO no festival Pé Dentro, Pé Fora, realizado pela Casa Livre; Projeto Planta, que integrava a X Bienal de Arquitetura; Ponto de Fuga, realizado pela Cia. Cinza na Casa do Povo. Seu texto E Eles Eram Eles Mesmos?, resultado de seu trabalho no Núcleo de Dramaturgia, foi encenado pelo diretor Francisco Medeiros, com temporada Sesi-Fiesp Avenida Paulista. Colaborou com o texto do espetáculo SECXXI, que integrou o X FITCRUZ – Festival Internacional de Teatro de Santa Cruz de la Sierra, na Bolívia. Teve o texto Cena Aberta selecionado em primeiro lugar pelo III Concurso de Jovens Dramaturgos do Sesc – Escola do Rio de Janeiro, para leitura pública e publicação, em 2013. Já trabalhou como artista orientador no projeto Ademar Guerra. É responsável pela coluna “Leitura e Escrituta da Cena” do site Ator Criador.

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