Um caminho para a dramaturgia em reflexos variados de cena

Recortes

PARA QUE ALGO APAREÇA ALGO DEVE SUMIR.
A PRIMEIRA FIGURA DA ESPERANÇA É O MEDO.
A PRIMEIRA APARIÇÃO DO NOVO É O TERROR.

Trecho retirado do programa do espetáculo/instalação “Guerra Sem Batalha”

Começar esse exercício de observação e escrita do/para o teatro é um privilégio que ganhei ao receber o convite do site Ator Criador. Pretendo abordar em encontros mensais, assim como o título da coluna propõe, recortes da cena que aporta em São Paulo. Por vezes, buscarei traçar uma linha tênue que de alguma maneira ligue as propostas dos espetáculos e grupos observados.

Janeiro foi um mês, que apesar de carregado por extensa programação de férias, sobretudo na área das artes visuais e do cinema, contou com boas estreias no teatro. Tive o prazer de conhecer o Grupo Bagaceira, com o espetáculo Lesados no Auditório do Sesc Pinheiros. Grupo radicado em Fortaleza, tem uma extensa atividade desde 2000 e ganhou grande reconhecimento devido à sua pesquisa autoral. O espetáculo, pode ser apreciado até o dia 14/02, é carregado de imagens simples e arrebatadoras. Quatro intérpretes para quatro escadas. Cenário este que inicialmente é o nicho onde as figuras representativas de cada ator/atriz fará seu espaço de criação, que permeia entre a partitura de ação e a costura entre palavras e encenação. Os atores estão vetados da expressão dos olhos por um óculos que já imprime um caráter a cada um deles, essa sensação de pessoas carregadas de questões infinitas internas somadas ao desejo pelo não sei o quê, fazem parte de uma qualidade de criação que nos aproxima sequencialmente de sua frustrante relação com o que está lá embaixo, um derradeiro fim ou um começo inexplicável. Figuras atadas por um sentimento comum que corrói a contemporaneidade, o nada, ou ainda, o inefável desejo pela realização de algo irreconhecível ou pouco palpável. O espectador se aproxima dessa ação dramática ao se ver no tedioso mundo ao qual pertencem, sem possibilidade de futuro e ao mesmo tempo frustrados com o presente. Cinzas, com identidades próprias, porém, iguais em tudo. O tom nas cores do figurino, iluminação e nas vozes dos intérpretes nos transporta para o que vemos na cidade como um todo, cruzando sentimentos humanos de ordem inesperada, vendo grandes construções e assim se fundindo cada vez mais, nos tornando parte daquele concreto, sem expressão e profundidade.

O que me entristeceu no pequeno auditório do Sesc Pinheiros é a altura dos refletores da primeira vara, a iluminação que está ali deveria favorecer os atores, enquanto que por vezes senti que a singeleza do espaço quase não deixou que atores e luz comunicassem de maneira tão livre. Por falar em liberdade, aproveito para seguir para Guerra Sem Batalha ou agora e por um tempo muito longo não haverá mais vencedores neste mundo apenas vencidos, da Cia Les Commediens Tropicales, até 08/03 no Centro Cultural São Paulo. Acredito que assim como o espetáculo, o título poderia conter mais vírgulas, digo isso por ter observado uma extensa exposição de cenas e instalações espalhadas pelo Anexo da Sala Adoniran Barbosa, que levavam o público a explorar seu ambiente de restos de uma guerra intrínseca ao homem, seja esta uma batalha que já ocorreu ou que ainda persiste em existir. Um misto excessivo de imagens onde o espectador busca frames que lhe interessem. Há momentos de um vislumbre maravilhoso que permeia a dramaturgia de Heiner Müller, onde se alimentaram para a construção desse espaço de criação. Destaco o rico programa disponibilizado, que além de incluir trechos do Coro da peça/instalação, também aborda aspectos da companhia que comemora 10 anos e expõe sua extensa propensão de procura incessante pelo significado da arte na cidade que hoje vivemos e que se reverbera em batalhas instintivas e irrefreáveis, assim como a série de projeções no espaço com animais em pleno momento do bote, que nunca deixarão a cadeia cessar, é a evolução instaurada por cacos de vidro e fogo. Como alimento, Heiner Müller provoca o espírito do espectador, ao mesmo tempo que é incompreensível, nos atravessa habilmente.

Você morre apenas uma morte
Mas a revolução morre muitas mortes.
A revolução tem muitos tempos, nunca o suficiente.
O ser humano é mais do que seu trabalho
Ou ele não existirá. Você já não existente
Pois o seu trabalho te consumiu
Você deve desaparecer da face da terra.

Trecho “Mauser”, de Heiner Müller

Permeando a poesia da nova dramaturgia brasileira está sem dúvida Jô Bilac, que tardiamente tive o prazer de conhecer via Beije Minha Lápide, em cartaz no Sesc Consolação até 01/03. Com a Cia Teatro Independente e Marco Nanini, o espetáculo é um relato de admiração pela obra de Oscar Wilde, que é o grande protagonista do enredo, por quem todos se debruçam e desenvolvem uma sequencial relação de paixão e entrega. Um estudo para o pensamento de sua obra que conta com encenação formidável de Bel Garcia e cenografia de Daniela Thomas, que cria uma cadeia de vidro onde o personagem central Bala, interpretado por Nanini, estabelece uma relação com seu guarda de cela Thommy e a advogada Roberta. Sem dar maiores pistas do enredo do espetáculo, me atento a considerar a conexão existente entre dramaturgia, interpretação e encenação, que não oferece níveis diferentes no trabalho, há um equilíbrio instigante que aproxima o espectador dos estados variados de envolvimento que se mostram a cada encontro: preso e seu guarda de cela; preso e sua advogada; preso e sua filha; a filha e a advogada; o preso consigo mesmo e por fim, o espectador com seus questionamentos: Onde mora a admiração por algo/alguém? Quais os limites para expressar a paixão? Como coexistir num ambiente de estabilidade ao que Wilde nos convoca: “Pouca sinceridade é uma coisa perigosa e muita sinceridade é absolutamente fatal”?

Assim como neste espetáculo, os demais apontam para uma necessidade incessante, a busca pelo real, mesmo que intangível, impermeável ou descartável. Nossa dramaturgia – a brasileira – é revigorante, por fornecer aspectos que muitas vezes nos afastamos, como o toque, ou ainda, a busca por uma cura, via escuta, para que nossa sensibilidade não se perca frente a tantas telas e propagandas de uma vida menos relacional. Ao observar essas criações resgato o valor do homem, que urgentemente precisa de atenção. Gosto deste meio-fio que une nosso país aqui em São Paulo, a beleza da criação do nordeste com o Grupo Bagaceira, a inquietação latente da Cia Les Commediens Tropicales e o convite a entrega das paixões com os cariocas da Cia Teatro Independente. Todos somos variantes de um país, resta saber o quanto estamos aptos a recebê-los com coração e alma abertos.

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Rafael Carvalho
Rafael Carvalho é ator, diretor, dramaturgo e arte-educador. Formado pela Universidade Federal de Ouro Preto nas habilitações de Licenciatura e Bacharelado em Direção Teatral. Integrou a 1ª Turma do Núcleo de Dramaturgia Sesi-SP/British Council. Autor das peças: "desFOCO" – publicado pela Editora Sesi-SP; "Ceci n'est pas une pipe {Este não É um cachimbo}" – com o grupo Transitório 35; "[A Cidade do Entre]" – com o Coletivo Onírico de Teatro (Campinas/SP); entre outras. Com o monólogo "MCNA - Meu Corpo Noite Adentro", foi premiado nas áreas de interpretação e dramaturgia. Atualmente é professor no Curso Profissional de Ator do Teatro Escola Macunaíma (São Paulo) e escreve para a coluna "Recortes de Cena" do site Ator Criador.

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