Pra Dar Um Fim no Juízo do: Homem

Pra Dar Um Fim no Juízo do: Homem | Ator Criador

Perdeu-se uma ideia do teatro. E, na medida em que o
teatro se limita a nos fazer penetrar na intimidade de
alguns fantoches e em que transforma o público em
voyeur, compreende-se que a elite se afaste dele e que o
grosso da massa procure no cinema, no music-hall ou no
circo satisfações violentas, cujo teor não a decepciona.

Antonin Artaud, O Teatro e Seu Duplo.

Antonin Artaud (1896-1948) sem dúvida inspirou fortemente a obra tragicomicorgiástica de José Celso Martinez Corrêa e somente um homem como ele poderia levar a peça radiofônica do pai do Teatro da Crueldade às últimas consequências de nossa atualidade/fatalidade cometida com o corpo e com o poder de Deus sobre os homens.

A peça para rádio, gravada em 1948, foi proibida de ir para o ar no dia de Yemanjá, 02 de fevereiro, em Paris e não por acaso é nesta origem que o Teat(r)o Oficina Uzyna Uzona começa seu enredo, com a brasilidade e um desejo de resgate pela língua original indígena, assim como as fortes influências que recebemos ao longo de décadas de um poder superior imperialista e colonizador, fazendo jus à um Brasil que ainda se reconfigura diante de tantos processos escravagistas contra o homem-índio, o homem-negro, o homem-pobre, entre muitos de nós que estão sujeitos à essa força sobre-humana que glorificamos e/ou escarramos. No caso de Pra Dar Um Fim no Juízo de Deus, Artaud condena a destruição da natureza, da multiplicação dos homens da guerra – os tais soldados prometidos para uma nova ordem mundial – e com isso mescla o ritual inerente à origem humana e também ao teatro, para contar fragmentos de um corpo que a cada dia se molda e se coloca à prova de dogmas, diretrizes e formatos plastificados e/ou descartáveis para compra/venda/troca.

“O organismo não é o corpo, o CsO, mas um extrato
sobre o CsO, quer dizer, um fenômeno de acumulação, de
coagulação, de sedimentação que impõe formas, funções,
ligações, organizações dominantes e hierarquizadas,
transcendências organizadas para extrair trabalho útil.”

Deleuze, Mil Platôs, Vol.3

A encenação de Zé Celso já contou com temporadas na década de 90 e seu impacto inicial aconteceu numa avant-première no Museu de Arte de São Paulo, com a utilização de fezes humanas, esse choque, que segundo o ator Marcelo Drummond, na primeira montagem era insinuado, na encenação de 2015 é totalmente exposta. Há momentos em que acontece uma masturbação, uma defecação, uma doação de sangue e corte de cabelos, tudo como instrumento de criação para o fortalecimento de um rito que percorre nada mais que a vida deste criador, ou devo dizer criadores, uma vez que o Teat(r)o Oficina parece se rejuvenescer dentro de seu próprio espaço, que é livre, expansivo e transita pelo belo cenário arquitetônico projetado por Lina Bo Bardi.

Já vivi experiências diversas nesse espaço, desde a apreciação sublime da 1ª versão de Cacilda! – que nos transportava para a vida da grande mulher do teatro, Cacilda Becker – até a jornada quase interminável de Os Sertões, um verdadeiro palco de uma guerra santa/política/literária brasileira que unia grande elenco e recursos tecnológicos, além do envolvimento do entorno do bairro do Bixiga com suas crianças dentro da cena.

Pra Dar Um Fim no Juízo de Deus, que esteve em cartaz até o meio de abril no Teat(r)o Oficina Uzyna Uzona, não chocou pela masturbação ou pelas fezes, talvez por hoje vivermos o absurdo cotidianamente e por perdermos o sentido e significado de crueldade que é gratuito e espalhado pelo Senado Federal ou pela Câmara dos Deputados, pelas redes sociais e suas manifestações silenciosas e/ou escondidas de horror e ódio. O espetáculo é parte de um discurso que Artaud elabora entre o que poderiam chamar de loucura ou (in)sanidade na década de 40, mas, que hoje é de uma coerência gritante. Pascoal da Conceição, sentado na privada, abre um jornal de opinião duvidosa e sem palavras já nos diz muito do belo discurso que virá a seguir e também Zé Celso, que traduz em seu corpo/imagem o Corpo Sem Órgãos (CsO), – surgido do pensamento artaudiano e desenvolvido por Deleuze e Guattari – e assim, a guerra aos órgãos e ao sagrado se estabelece e se mostra isenta de um juízo, buscando a libertação, como o ato de peidar, tão impedido em determinadas situações, mas irrefreável e necessário.

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Rafael Carvalho
Rafael Carvalho é ator, diretor, dramaturgo e arte-educador. Formado pela Universidade Federal de Ouro Preto nas habilitações de Licenciatura e Bacharelado em Direção Teatral. Integrou a 1ª Turma do Núcleo de Dramaturgia Sesi-SP/British Council. Autor das peças: "desFOCO" – publicado pela Editora Sesi-SP; "Ceci n'est pas une pipe {Este não É um cachimbo}" – com o grupo Transitório 35; "[A Cidade do Entre]" – com o Coletivo Onírico de Teatro (Campinas/SP); entre outras. Com o monólogo "MCNA - Meu Corpo Noite Adentro", foi premiado nas áreas de interpretação e dramaturgia. Atualmente é professor no Curso Profissional de Ator do Teatro Escola Macunaíma (São Paulo) e escreve para a coluna "Recortes de Cena" do site Ator Criador.

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