Potência autoral e a visita do estrangeiro

Como apaixonado pela dramaturgia contemporânea, frequento as salas de espetáculos em busca de um riso que me surpreenda, não falo da melhor das comédias, mas de algo inventivo, que seja único daqueles intérpretes específicos, naquele espaço escolhido. O mestre do teatro mundial Peter Brook, que falarei mais ao final, aponta em seu espaço vazio de cena para a necessidade do teatro em nossas vidas, é ele quem traduz de que matéria somos feitos e por isso merece um respeito mútuo entre criadores e observadores.

Começo assim com o grande destaque de meu mês como observador: Manual de Autodefesa Intelectual, da Kiwi Cia de Teatro, em cartaz no Sesc Belenzinho até 10 de maio. Sem dúvida nenhuma trata-se uma experiência onde o espectador se motiva o tempo todo. O Teatro Documentário tem como característica oferecer um painel sobre o tema em que será focado o espetáculo, e assim se desdobrando em variadas formas de narrativa para que o tema fique incrustrado para o espectador.  O Manual… transita por todas as crenças e histórias que nos contam ao longo da vida e que sem um autor preciso passamos a acreditar e a creditar nossos dias dando a ele um tom de realidade. Que mundo é o real esse em que vivemos? Há religiões e seus dogmas, há cobranças dos Céus e do Inferno para nossas ações, não temos poder sobre nossos próprios atos e ainda por cima somos manipulados por uma mídia trucidante aliada ao cego e interminável avanço tecnológico. Um espetáculo que aborda sem rodeios sobre nossas manias e medos impostos pela sociedade correta, familiar, cristã e globalizada. Destaco as atrizes Fernanda Azevedo, Maíra Chasseraux e Maria Carolina Dressler, formidáveis em suas performances, variam dentro de um tom irônico para expor os horrores e delícias das crenças, superstições, obscurantismos e a pseudociência de nossos dias. Esse olhar irônico não se sobrepõe quando o grupo assume seu lugar enquanto observadores atentos de nosso país, ele denuncia sem medo e nos apresenta um quebra cabeça fácil de compreender porque somos/estamos inafetáveis diante de tantas atrocidades públicas, talvez por sermos parte integrante da corrupção. Destaco também a liberdade de fala que a acidez desse Kiwi nos traz ao rezar orações que carregamos desde a infância e sem querer vemos a transparência por trás disso, ou seja, Deus está aqui, por quê? Quem está nele? Por que Ele com e maiúsculo? Essa necessidade invisível de levantarmos as mãos e saldar um deus único também está presente na abertura cerebral que o espetáculo nos provoca. Se você é um daqueles que não quer confrontar seus dogmas, escutar uma oração em vão, e não aguenta uma crítica ácida ao governo/país que vive e faz, então não vá, do contrário, delicie-se com olhos e ouvidos atentos.

Quem quiser ser cristão deve arrancar os olhos da razão.

Martinho Lutero

Outro espetáculo que estava ouvindo falar bastante e fui conferir é Consertando Frank, que felizmente estendeu temporada no Teatro MuBE Nova Cultural até o final de maio. O autor Ken Hanes, que tem romances e peças teatrais em seu rol de criações, já recebeu prêmios variados pela inventividade de suas obras, com este trabalho que contou com uma produção original no circuito off-Broadway de Nova York, ganha versão brasileira pela direção eficaz de Marco Antônio Pâmio, que escolheu pelo fortalecimento da dramaturgia num ambiente mesclado de um consultório com uma casa e uma série de portas ao fundo, nada mais do que as trancas que nos colocamos ao não se assumir de seus reais e intencionais desejos. A “cura gay” – tão vociferada pela bancada evangélica e alguns doutores Frankensteins da psicologia – é o foco da peça que já começa em ação pela boca afável do ator Chico Carvalho, aqui o Frank, que está entre seu psicólogo (Henrique Schafer) e seu marido, também psicólogo (Rubens Caribé) num embate para descobrir a verdade por traz do tal tratamento. Frank se coloca à prova para descobrir esses métodos e denunciá-lo em sua coluna jornalística, influenciado por seu marido ele se vê num ambiente de crise, imposto em parte pelo tratamento do psicólogo que logo se utiliza dos mesmos métodos persuasivos para interferir e descobrir o “plano” evidente e assim vermos um desmascaramento que se dá não somente pela excelente performance dos atores, mas no avanço pelos espaços da cena, como se tudo fosse a mente desse Frank dividido entre amor e razão, entre casa e consultório, entre escolhas e mentiras. Chico Carvalho é um daqueles atores surpreendentes que vemos poucas vezes na vida, existe em sua atuação uma variedade de intenções que permeia sua máscara facial e seu corpo com maravilha criativa, há uma feminidade de seu gesto, assim como uma verdade sem sentido em seu olhar, como os que nos aproximamos por vermos um pouco de nós lá dentro. No ano passado, ele interpretou Ricardo III com a mesma maestria, a ponto de deixar o espectador com amor por sua vilania fulgurante e também de sua transcendência artística.

Ainda na evidência da crítica está Urinal – O Musical, traduzido pelo Núcleo Experimental e com direção de Zé Henrique de Paula, é divertidíssimo e provocante aos olhos de quem ama um belo musical, ficarão felizes com as atuações impecáveis, musicalidade vibrante e a capacidade de construir um espaço sólido de criação que está muito próxima dos grandes musicais que vêm engolindo a cidade de São Paulo, com seus ingressos meteóricos e suas encenações cinematográficas que muitas vezes me parecem muito além da realidade de um teatro verdadeiramente brasileiro. Em Urinal, essa fórmula cansativa de repetições, com música tema que se reverbera o tempo todo, com ideias textuais que me relembram uma infância com a Disney, se concretizam e sinceramente cansam. Para piorar tive a infelicidade de assistir ao espetáculo num dia em que o público de início parecia um pouco quieto, mas havia alguém que ria incessantemente, olho para trás e veja só, a mesma moça que distribuía ingressos na bilheteria. Talvez devido ao universo que se apresentava ali, me lembrei da plaquinha de aplausos utilizado em programas de auditório, aqui no caso, sem placas ou pedidos, mas praticamente uma provocação ou um convite. No todo, não posso deixar de considerar que se trata de uma direção impecável, o Núcleo Experimental vem se consolidando por grandes trabalhos e quase sempre privilegiando a nova dramaturgia brasileira e mundial. Destaques para Daniel Costa, o Policial que também assume ao lado da personagem Garotinha a função de narrador de cada cena iniciada; Nábia Vilella é o grande destaque nas músicas, que foi a única que me provocou aos aplausos também repetitivos e clássicos de um musical à la Broadway. Urinal continua em cartaz no Teatro do Núcleo Experimental até julho, sextas são gratuitas, chegando lá a partir das 19h você consegue garantir um ingresso.

Não posso deixar de falar sobre dois momentos especiais para o mês de abril em São Paulo, que é o O Terno, espetáculo com direção de Peter Brook, Marie-Hélène Estienne e Franck Krawczyk, que aportou no Sesc Pinheiros na semana passada. Essa montagem que configura a arte de Peter Brook, já contou com uma versão em francês há alguns anos e agora passou por São Paulo em inglês e revisto, que como o próprio diretor diz, “nada no teatro permanece imóvel; alguns temas simplesmente se esgotam e outros anseiam por voltar à vida.” Num espetáculo onde a simplicidade era ferramenta máster para uma contação de histórias, prevalece a musicalidade e a transformação do espaço vazio em amplo painel visual para o espectador. Em determinado momento a personagem Matilda, interpretada pela vibrante Cherise Adams-Burnett, oferece uma canção a todos aqueles que não podem ter o que querem, e assim vemos a importância da visita desse estrangeiro, que nos tocou pelo afeto e pela reciprocidade de um conto que tem muito das mesquinharias de que somos feitos. A singeleza da presença de Brook por aqui nos revigora, no entanto, seu espetáculo poderia ter ocorrido numa praça pública, ou ainda, num espaço menos pomposo, colocá-lo num pedestal me parece diferente do teatro que ele mesmo propõe, mesmo que seja filho do teatro elisabetano, não podemos nos esquecer de como o grande William Shakespeare começou, num teatro a céu aberto, que hoje resiste fulgurante – refiro-me ao Globe Theatre, de Londres.

Fechando a maratona de abril, Why The Horse? [Por que o cavalo]?, é o velório cênico de Maria Alice Vergueiro, criado por ela e seu Grupo Pândega de Teatro. Um happening sobre a morte de Maria Alice, que sente que ela virá e assim nos partilha com sua alegria e ainda vontade de viver a vida/teatro que tanto se dedicou. Vi um espetáculo homenagem à ela mesma, sem brilhantismo, mas com liberdade para visitarmos seu pré-túmulo. Nossa aflição pela morte quase fica esquecida, mas também nos afetamos por isso, afinal o gosto das flores e das cinzas não sai da mente do espectador. Ficamos então ali, emocionados com a emoção desta mulher que se entrega artisticamente à nós e celebra seu teatro com os estrangeiros e os amigos que sempre à influenciaram nessa dura batalha que é amar o que nos consome. O espetáculo está no Sesc Santana até 10 de maio.

Rafael Carvalho
Rafael Carvalho é ator, diretor, dramaturgo e arte-educador. Formado pela Universidade Federal de Ouro Preto nas habilitações de Licenciatura e Bacharelado em Direção Teatral. Integrou a 1ª Turma do Núcleo de Dramaturgia Sesi-SP/British Council. Autor das peças: "desFOCO" – publicado pela Editora Sesi-SP; "Ceci n'est pas une pipe {Este não É um cachimbo}" – com o grupo Transitório 35; "[A Cidade do Entre]" – com o Coletivo Onírico de Teatro (Campinas/SP); entre outras. Com o monólogo "MCNA - Meu Corpo Noite Adentro", foi premiado nas áreas de interpretação e dramaturgia. Atualmente é professor no Curso Profissional de Ator do Teatro Escola Macunaíma (São Paulo) e escreve para a coluna "Recortes de Cena" do site Ator Criador.

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