Os muitos Brasis

Certamente, abril de 2016 é o mês onde os brasileiros estão repensando, e muito, sua nacionalidade, seus valores vêm se revelando na superfície de um mar de lama que ainda corre calado por nossas vias. De quantas tragédias precisamos re-viver para mostrar a fragilidade de nossos ideais. E que ideais são esses? Felizmente, ainda há ar nos palcos! Lá ainda somos instrumento de liberdade de fala. Lá ainda presenciamos artistas que falam nossa língua ou ainda, nos transportam para a história que insistimos em esquecer ou sublimamos dentro da camada de lama que corre da boca de “nossos”  representantes políticos e novos auto-denominados líderes da nação.

Nos palcos paulistanos, o mês de abril traz uma perspectiva de Brasis que já se foram pela força do tempo e que, naturalmente se fazem atuais. Neste mês falo um pouco da produção de Felipe Hirsch com o Ultralíricos 5, que estreou na 3ª MIT SP; a produção de uma nova companhia, o Grupo Teatral Mata! e seu olhar sobre a Guerrilha do Araguaia e a presença do norte-americano Robert Wilson para uma produção essencialmente brasileira, Garrincha.

Em A Tragédia Latino Americana e a Comédia Latino Americana – Primeira Parte: A Tragédia Latino Americana, de Felipe Hirsch, que esteve no Sesc Consolação até 17 de abril – o dia em que ouvimos um número insuportável de dedicatórias a Deus, aos filhos, netos, sogras e papagaios de estimação para um voto favorável ao impedimento de nossa Presidenta da República –, estava eu na plateia deste acontecimento teatral onde autores e atores de diversas nacionalidades da América Latina foram o foco de uma produção ousada, 15 cenas entre contos, cartas manifesto e peças curtas encenadas em série, separadas por 2 atos, narrando a essência de um povo colonizado até os dias atuais. Na grande encenação de Felipe Hirsch, blocos de isopor compunham o espaço, que primeiramente eram organizados como um grande bloco, depois, desconstruídos e realocados no espaço como um grande piso – o mármore divino, branco e puro – e depois, novamente desconstruídos e novamente levantados de maneira organizada, encaixados como nossa sociedade, que constrói seu pensamento diante do caos e de mesmo modo manifesta seu dom de destrui ideias. O tom preto e branco de figurinos, da luz e do espaço de cena é a abertura para as cores que se fazem evidentes em nosso continente, que também é carregado por uma variedade de línguas: a portuguesa, o castelhano e os “invasores” que até hoje nos colonizam com seu inglês ou seu francês. A tragédia contemporânea, diferente do propósito da Grécia Antiga, hoje tem gosto de ironia, rimos de nossos horrores e não nos sentimos atravessados diante do absurdo.

Neste último dia de temporada, o elenco contou com uma liberdade deliciosa ao apontar os principais articuladores da instância de absurdo que percorre nosso país. Ao final do espetáculo, o ator Guilherme Weber enaltece a possibilidade de liberdade de expressão que ainda existe nos palcos e de bravos artistas que não permaneceram parados diante da ditadura para fortalecer sua voz como nação, como foi o caso do ator Renato Borghi, que estava na plateia e foi homenageado pelo elenco.

A segunda parte do projeto, A Comédia Latino Americana, acontecerá no Festival Íbero Americano Mirada.

Guerrilheiro não tem nome, com direção de Anderson Zanetti aponta para o Brasil que esquecemos, assim como outros que deixamos apagar em nossa memória construída por livros de História carregados de imagens e breves argumentos. No espetáculo, a dramaturgia construída em caráter coletivo, aponta para recortes da vida de jovens que empunharam armas na Guerrilha do Araguaia, que tinha por objetivo fomentar uma revolução socialista, iniciada no campo, precisamente na região amazônica brasileira e altamente rechaçada pelas Forças Armadas, que neste período, começo da década de 70, já representava a truculência de um poder que se fortalecia em todo o país. Na encenação do Grupo Teatral Mata! o corpo é o instrumento narrativo do trio de atores que revezam por uma grande variedade de personagens, entre os principais jovens guerrilheiros e guerrilheiras e seus algozes, o discurso épico foi fundamental no pensamento da dramaturgia, pois, apesar de carregado de informações, permitiu estabelecer uma linha através da verdade e da crueldade sofrida por brasileiros que acreditavam numa sociedade mais justa. Há uma beleza no apuramento dos corpos, sobretudo no início do espetáculo, que dá um enfoque no estado latente de guerra dentro dessa camada da população, que viveu na espreita, como bichos, preparados para dar a vida em nome de seus ideiais. Essa força, como tradução da vida desses homens, por vezes se suavizava ao longo espetáculo, que conta uma troca excessiva de personagens para trazer outros recortes e momentos dessa trajetória, ao final ganha novo fôlego e por um chamado particular ao público, a de manter a atenção para a cena que viria, o estado de tensão novamente se evidencia.

O discurso dos autores/atores, talvez não por acaso, seja a tradução de um Brasil que há mais de 40 anos foi calada e que agora, com o advento de uma liberdade de expressão desenfreada, narra com tom da década de 70 o país de hoje, que possui forças tão armadas como o daquele tempo, que ainda sofre a influência do silenciamento das camadas populares, que não quer mostrar o interior de nosso interior. Se os guerrilheiros do Araguaia não tinham nome naquela época, hoje, os avatares escondem quem somos verdadeiramente e assim podemos atirar podres palavras ao futuro que nos cobrará o que fomos/somos.

Este slideshow necessita de JavaScript.

No meio de campo entre o real e o fictício está o ícone do teatro mundial, Robert Wilson, que retorna à São Paulo no final da parceria com o Sesc SP para a encenação “100%” tupiniquim de Mané Garrincha. No espetáculo, que contou com estreia no dia 23 de abril, Bob Wilson apresenta como sempre um universo carregado de imagens, com bela intensidade de cores e grande orquestração para a mise-en-scène que alterna como que da água para o vinho no palco. A história de Garrincha é pretexto para a exploração de quadros que compõem a vida do atleta, que em momento algum coloca o pé numa bola. É o mito em volta de Garrincha, o cotidiano de seus admiradores e seu envolvimento com a bebida e os amores que ganham evidência na encenação, que não dá destaque para uma estrutura narrativa formal e prefere evidenciar na música e na contemplação da imagem, o inconsciente de um homem que conhecemos por ser o grande bailarino dos campos de futebol. Certamente os maiores destaques do espetáculo são para os músicos brasileiros que executam a trilha ao vivo e o elenco feminino negro que é forte e ultrapassa a linguagem do encenador, brincando com a precisão de gestos e formas propostos. Talvez dentre os grandes espetáculos com a assinatura de Bob Wilson que vimos nos últimos anos em São Paulo, esse esteja à altura de um dos mais belos que foi “A Ópera dos Três Vinténs”, de Bertolt Brecht, com o Berliner Ensemble. Qualidade esta justificada pela qualidade de seu elenco. Em Garrincha, o elenco feminino citado anteriormente dão vigor para o que já conhecíamos em espetáculos anteriores, elas não apenas se enquadram à forma de fazer do encenador, mas inovam e evidenciam uma estranheza que em muito se distancia do modo de fazer arte nos palcos brasileiros. A referência constante a um mundo visual, quase como dos desenhos animados, em somatória com os grandes recursos cênicos de luz, cenografia e sonoridade são gigantes que engolem a inventividade que nosso país aprendeu a realizar sem muito dinheiro. Muitas vezes, foi da escassez que tiramos nosso material mais potente. É verdade que nos últimos anos nosso teatro tem sofrido grande influência dos musicais norte-americanos e isso nos tem feito repensar a ideia de entretenimento e dos valores que o público busca. Nesse sentido, temos um ótimo referencial, que gera críticas, sobretudo pelo alto investimento financeiro, mas que também oferece uma abstração do óbvio, falo de Robert Wilson com seu Garrincha. Um Garrincha brasileiro, porém, nem tanto. Um Garrincha que poeticamente sempre esteve ao redor de seus pássaros, engaiolado num belo e eterno vôo. Nesse campo, Bob nos leva a viajar, lentamente, contemplativamente a figura abstrata que parece, mas não está tão distante de nós.

Esteticamente, pode-se dizer que a câmera lenta é sinônimo do estilo de Wilson. Seu uso constante não decorre, porém, de um mero capricho. A obsessão de Wilson pela câmera lenta é resultado de seu interesse por níveis subliminares de comunicação, difíceis de ser detectados em condições normais. […] A conclusão é que o ser humano expressa com excessiva rapidez muitas das emoções que ele experimenta, a ponto de não se poder percebê-las com clareza.

GALIZIA, Luiz Roberto. Os processos criativos de Robert Wilson. São Paulo: Perspectiva, 2004.

Este slideshow necessita de JavaScript.

Guerrilheiro não tem nome

Onde: Sede Cia Antropofágica (30/04 e 01/05)
Rua Turiassu, 481, Perdizes
*No dia 30/05, após o espetáculo haverá um debate com o Prof. Dr. Romualdo Pessoa da Universidade Federal de Goiás (UFG), especialista na Guerrilha do Araguaia.
Teatro Leopoldo Fróes (06, 07 e 08/05)
Antônio Bandeira, 114, Vila Cruzeiro
Teatro Zanoni Ferrite (13, 14 e 15/05)
Av. Renata, 163, Vila Formosa
CCSP: Sala Adoniran Barbosa (28/05 às 19h e 29/05 às 18h)
Rua Vergueiro, 1000, Paraíso
Quando: Sexta e Sábado: 20h / Domingo 19h
Quanto: Gratuito / Retirar senha 1 hora antes
Classificação: 16 anos / Duração: 80 minutos

Garrincha

Onde: Sesc Pinheiros – Teatro Paulo Autran
Paes Leme, 195 – Pinheiros / Tel: (11) 3095-9400
Quando: Até 29/05. Quinta a sábado: 21h / Domingo 18h
Quanto: R$ 18 a R$ 60 / 1010 lugares / Possui acesso para deficiente.
Classificação: 16 anos / Duração: 120 minutos

Rafael Carvalho
Rafael Carvalho é ator, diretor, dramaturgo e arte-educador. Formado pela Universidade Federal de Ouro Preto nas habilitações de Licenciatura e Bacharelado em Direção Teatral. Integrou a 1ª Turma do Núcleo de Dramaturgia Sesi-SP/British Council. Autor das peças: "desFOCO" – publicado pela Editora Sesi-SP; "Ceci n'est pas une pipe {Este não É um cachimbo}" – com o grupo Transitório 35; "[A Cidade do Entre]" – com o Coletivo Onírico de Teatro (Campinas/SP); entre outras. Com o monólogo "MCNA - Meu Corpo Noite Adentro", foi premiado nas áreas de interpretação e dramaturgia. Atualmente é professor no Curso Profissional de Ator do Teatro Escola Macunaíma (São Paulo) e escreve para a coluna "Recortes de Cena" do site Ator Criador.

Comente