O Avesso do Claustro

O Avesso do Claustro e a vida de Dom Helder Câmara

Você sabe quem foi o único brasileiro indicado por quatro anos consecutivos para o Prêmio Nobel da Paz? E o brasileiro que criou um banco para emprestar dinheiro aos pobres ainda no início dos anos sessenta? Quem conseguiu organizar a construção de apartamentos para favelados no exclusivo bairro carioca do Leblon em mutirões comunitários? E aquele que denunciou as torturas praticadas por militares brasileiros para mais de dez mil pessoas na França e por isso teve o nome proibido de ser citado de maneira positiva ou negativa pela Ditadura Civil-Militar por qualquer veículo de comunicação brasileiro por quase dez anos? A lista de perguntas poderia aumentar para testar os conhecimentos do leitor ou da leitora sobre a figura que se tornou o tema do mais novo espetáculo da Cia. do Tijolo, em cartaz no Sesc Pompeia durante este mês de junho. O espetáculo O Avesso do Claustro dá a resposta para as perguntas acima e revela quem foi que, nos tempos sombrios da Ditadura Civil-Militar amedrontou os donos do poder espalhando esperança aos jovens com suas pregações por justiça e atos de rebeldia, tornando-se uma referência para muitos deles naquela época. Seu nome é Helder Câmara e foi o arcebispo de Olinda e Recife por cerca de 20 anos, de onde irradiou a promessa de uma Igreja comprometida com a transformação social.

Não é a primeira vez que a Cia. Do Tijolo envereda pela memória de personagens importantes, mas não re-conhecidos pela sua importância para a construção do coletivo nacional. Seu primeiro espetáculo versava sobre o famoso poeta cearense Patativa do Assaré. Seguiu com o inesquecível Cantata para um Bastidor de Utopias inspirado em Garcia Lorca. Há também na lista da trupe o belíssimo monólogo Ledores no Breu, sobre o analfabetismo e norteado pelo pensamento do famoso pedagogo Paulo Freire. Falar sobre Dom Helder foi uma escolha óbvia na trajetória teatral deste grupo dada a opção política-artística-ideológica que os seus integrantes abraçaram para o fazer teatral.

A peça, a começar pelo título O Avesso do Claustro, incorpora o espírito libertário de Dom Helder e sintetiza bem a liberdade com que o arcebispo cearense viveu as dimensões religiosas e políticas em sua passagem por este planeta. Se tem uma coisa que ele conseguiu foi não ser enclausurado pelas instituições religiosas ou políticas. Era muito crítico da ostentação papal (teria o Papa Francisco lido as suas críticas ao luxo desmedido exibido pelo seu cargo?). Para dar o exemplo, ele mudou-se do palácio episcopal para morar em um quarto e sala atrás de uma pequena igreja.

O Avesso do Claustro nos revela que dom Helder foi fascista na juventude e mais tarde tornou-se um socialista crítico da uma União Soviética comunista que julgava tão imperialista quanto os Estados Unidos capitalista. Advogou pelo diálogo com marxistas ateus em um mundo então dividido pela Guerra Fria. Condenou a Igreja Católica com veemência por suas atitudes moralistas petrificadas. Câmara foi uma figura ímpar que ainda hoje é escondida por uma Igreja que é, em sua maioria, anódina na crise brasileira atual e ainda tomada hoje por mentes focadas no passado.

O espetáculo não conta a vida do arcebispo de forma linear como o documentário Dom Helder: o santo rebelde, dirigido por Érica Bauer, mas é possível ver que bebe muito deste e da biografia Dom Helder Câmara: entre o poder e a profecia, escrita por Nelson Pilleti e Walter Praxedes (Editora Ática). Há muitos fatos e casos que ficam de fora da peça, mas não a comprometem no seu objetivo.  Como seria possível agrupar tantas facetas dos noventa anos de vida de alguém tão ativo nos campos político, artístico e espiritual? Ainda mais que dom Helder esteve nos bastidores de praticamente todas as grandes transformações políticas e religiosas acontecidas no Brasil na segunda metade do século passado como protagonista. Também esteve nos bastidores das mudanças na Igreja da América Latina e do Vaticano no mesmo período. Foi profeta ao tocar nas causas indígenas e negras colaborando com a Missa da Terra Sem Males e com a Missa dos Quilombos (esta última proibida pelo Vaticano) no início da década de oitenta quando a questão racial ainda estava despontando como um assunto importantíssimo da vida nacional em um país racista como o Brasil. Não foi um autor de grandes tratados teológicos, mas antes publicou livrinhos sobre a roseira do seu quintal ou reflexões sobre o cotidiano. Precisa justificar ainda mais a escolha feita pela Cia. do Tijolo para o tema deste espetáculo?

Uma pena que a peça não trate com mais profundidade das meditações realizadas por cerca de cinquenta anos durante as madrugadas e que deram como frutos muitos poemas (antes que me esqueça, o homem também era um poeta). Por ser um artista, uma das primeiras atitudes ao mudar-se para a cidade do Recife foi realizar reuniões com artistas locais para saraus e debates abertos em pleno vigor da Ditadura. Defendia uma arte engajada, insubmissa e aliada dos oprimidos. Nada mais atual para os nossos tempos e em consonância com a trajetória da Cia. do Tijolo.

A direção do espetáculo fica a cargo de Dinho Lima Flor e Rodrigo Mercadante. Dinho também atua dando vida a Dom Helder. Ao longo do espetáculo o personagem vai tomando conta de Dinho até que os trejeitos dramáticos e a voz solene de Dom Helder, que parecia sempre discursar para uma multidão mesmo quando estava conversando com uma única pessoa, reverbera com veracidade.

A peça traz belos relatos como o da prostituta que foi perguntar a Dom Helder se era pecado o fato de ir a um presídio todos os anos na Sexta Santa para fazer sexo com um prisioneiro como uma forma de sacrifício. Não preciso dizer que a resposta do arcebispo foi a de não condená-la.

Outro belo relato foi a descoberta que Lima Flor fez de um poema escrito por Dom Helder e enviado para Chico Buarque para que o já famoso cantor o musicasse, o que nunca aconteceu. Mais de cinco décadas depois a Cia. do Tijolo realizou o desejo do arcebispo e o resultado é belíssimo.

Uma das cenas mais fortes é a do encontro entre Dom Helder e um Papa. O Arcebispo de Olinda e Recife faz duras críticas à ostentação do papado e conta que reza para o papa ser morto, pois há que muito um pontífice não morria por causa da fé ou pelos pobres. A cena ganha ainda mais peso quando Lima Flor declama um dos famosos poemas do Bispo Vermelho (alcunha que ganhou de alguns inimigos como Nelson Rodrigues e Gilberto Freyre) e que demonstra bem a sua radicalidade:

Sonhei que o Papa enlouquecia
e ele mesmo ateava fogo ao vaticano
e à Basílica de São Pedro.
Loucura sagrada
porque Deus atiçava o fogo
que os bombeiros, em vão,
tentavam extinguir.
O Papa, louco,
saía pelas ruas de Roma
dizendo adeus aos embaixadores
credenciados junto a ele.
Jogando a tiara ao tibre.
Espalhando para os pobres
O dinheiro todo do
Banco do Vaticano.

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Flávio José Rocha trabalha com Teatro do Oprimido desde de 2005 e é um apaixonado por todas as formas do fazer teatral. É também doutorando em Ciências Sociais na PUC-SP e pesquisa temas relacionados à questão socioambiental.

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