Mas por quê??! A História de Elvis

A HISTÓRIA DE ELVIS PRESLEY | ATOR CRIADOR

PAPO CABEÇA PRA CRIANÇAS

Já devo ter visto umas 30 peças este ano. Adultos, infantis, musicais, peças realistas, comédias bobas, comédias inteligentes, espetáculos de grupo, monólogos… Tenho visto muita coisa boa, com a sensação de que estamos colhendo uma ótima safra teatral no Rio de Janeiro. Foi um espetáculo infantil, visto no Theatro NET, que mais mexeu comigo: Mas por quê??! A história de Elvis, me fez chorar como uma criança. E olhem que sou uma criança bem grande! A peça me fez dar mais um passo na despedida de coisas do passado. Afinal, esta é uma peça infantil que fala sobre luto. E o que pode ser mais difícil na vida da gente do que as nossas perdas, e a consciência da nossa finitude e daqueles que amamos? Com a palavra, os autores:

“De tudo que a gente aprende na vida, parece que uma coisa a gente nunca aprende: a perder. Porque perder (e a gente tá falando de perder um lápis até um vôo, mas especialmente de perder quem a gente gosta) é como explodir ao contrário. É como desaparecer. Como se a gente desaprendesse tudo. E dói como dor de dente, como chute na canela, como soco no estômago. Dói como se fosse no corpo (…) Mas a partir de algo que se perde, o tempo ensina, tem sempre muito que se ganha. (…) Perder é compreender que nada está perdido. E tudo ainda pode ser inventado. Porque é assim que é numa peça de teatro. Porque é assim que é na vida.”

Este é o texto de apresentação dos autores da peça, Rafael Gomes e Vinicius Calderoni, no programa do espetáculo. Eles souberam explorar o tema da perda dentro do universo infanto-juvenil de forma brilhante. Com muita sutileza e senso de humor, mas sem deixar de ir fundo na questão. A dramaturgia é uma adaptação encomendada pelo ator e produtor Pablo Sanábio. Em seu terceiro sucesso seguido neste seguimento, ele resolveu ficar apenas na produção e apostar no livro de um autor e ilustrador alemão pouco conhecido por aqui: Peter Schössow. Além de encontrar este tesouro, o danado do Pablo ainda teve a grande sacada de fazer um musical com músicas do Elvis Presley. No livro original, havia uma pequena referência ao cantor apenas na últimas linhas, quando o passarinho Elvis, objeto do luto da protagonista, se despede assoviando uma canção da grande estrela do rock americano dos anos 1960.

INFANTIL PÓS-DRAMÁTICO

A peça se passa dentro da cabecinha de Cecília, a menina que enfrenta o luto pela primeira vez na vida ao se despedir do seu passarinho. Portanto, abre-se a porta da fantasia e do surrealismo nesta viagem pelo inconsciente. Os outros quatro personagens são todos memórias embaçadas da menina, que vão se apresentando através de narrativas. Cada vez que um deles se apresenta, os outros quatro atores vão se revezando nos diversos papeis que vão surgindo nas histórias. Este recurso se aproxima da estética pós-dramática, amplamente teorizada nas academias de teatro, uma vez que não existe linearidade dramática, nem unidades de tempo ou espaço. Tudo se passa como um grande jogo de “faz de conta”, sem começo nem fim determinados, onde todos jogam ao mesmo tempo, onde várias histórias se embaralham de forma simples, clara e divertida. De fato, as crianças brincam de fazer teatro pós-dramático com muito mais prazer e simplicidade do que nós, pesquisadores caquéticos, podemos imaginar.

A linha que conduz a dramaturgia é o processo de amadurecimento de Cecília. Enquanto os outros personagens contam as histórias de perda e abandono que os fizeram chegar até ali, Cecília vai se encaixando para compor os personagens necessários para ajudar a contá-las. Essa intensa dinâmica de “faz de conta” e “contação de histórias”, é a essência do espetáculo. Ao se interessar pela história do outro, a ponto de participar da mesma para representá-la (fazer presente novamente), a menina brinca, se diverte, explora a sua criatividade e, assim, acaba por abstrair e superar a sua dor pessoal. No final das contas, aquelas histórias também eram suas, pois aqueles personagens vão se revelando como memórias que ela estava reavivando. Um prato cheio para os pesquisadores junguianos do inconsciente coletivo… Nesse aspecto de viagem ao subconsciente, pode-se sugerir também algum parentesco com o universo de Alice no País das Maravilhas” de Lewis Carroll.

VISUAL ONÍRICO, SIMPLES E DESLUMBRANTE

O cenário de Bia Junqueira contribui para essa viagem subjetiva, sem fazer uso de grandes aparatos cenográficos. Com estruturas cênicas simples, inventivas e alguns materiais reaproveitados, são apresentados diversos e pitorescos ambientes oníricos. Parte do cenário funciona quase como um personagem: no início, a mala na qual Cecília traz os restos mortais do passarinho Elvis, é gigantesca, maior do que ela. Ao longo da peça, a mala vai aparecendo cada vez menor, até ficar do tamanho de um leque (simbolizando a dor da menina, que fica cada vez mais leve e fácil de carregar).

Os figurinos de Luciana Buarque, lúdicos e coloridos, se integram perfeitamente neste contexto. A caracterização de Cecília faz lembrar, de forma estilizada, a tradicional Emília do Sítio do Pica-Pau Amarelo” de Monteiro Lobato. A sua estética de boneca amplia ainda mais a fantasia, colocando a protagonista no mesmo nível dos personagens imaginados por ela. A luz de Luiz Paulo Nenem colore, ilumina e completa a fábula.

LOVE ME TENDER, LOVE ME TRUE

Agora vamos falar de música, de Elvis e Habib. A direção musical proposta pelo jovem e já conhecido Felipe Habib é arrebatadora. O terceiro número, cantado por Júlia Gorman, disparou o meu gatilho lacrimal. Dali adiante foi ladeira abaixo. As músicas de Elvis têm algo de romântico, melancólico e poético, que conduz toda aquela viagem emotiva sobre a perda a um ponto inefável de profundidade e leveza. O elenco se reveza em muitas vozes e em vários instrumentos musicais, contribuindo para a divertida sensação de crianças contando uma história de forma espontânea. Eles tocam bateria, guitarra, instrumentos de sopro e muitos outros. É uma orquestra deliciosamente anárquica.

Além de Júlia, os outros três personagens da memória de Cecília são lindamente representados por Marcel Octavio, Pedro Lima e Simone Mazzer, esplendorosa atriz e cantora oriunda da Armazém Companhia de Teatro, de Curitiba. Cecília é interpretada pela encantadora Letícia Colin, que conduz a brincadeira com graça e energia. “Mas por quê??!”, ela pergunta diversas vezes, docemente inconformada, sempre que surge algo triste na história. A tristeza da menina desamparada vai se transformando em brincadeira, se misturando com outras memórias e, com um notável amadurecimento, ela acaba se despedindo do seu passarinho.

A direção de Renato Linhares é competente na organização cênica desta, aparentemente simples, mas complicada, brincadeira de narrativas subjetivas emaranhadas. A frenética variação de focos de emissão de personagens, vozes, instrumentos, textos e músicas é harmoniosamente resolvida e defendida pelo elenco com precisão. Fica apenas uma ressalva em relação à movimentação corporal e cênica dos atores, que não acompanha o mesmo rigor dos outros setores. Afinal, por trás da narrativa caótica, existe uma partitura muito bem definida. Já o aspecto corporal do elenco e a sua utilização do espaço, embora exprimam a mesma espontaneidade, parecem apoiar-se em uma partitura mais solta.

BRINCADEIRA INFINITA

Nada que prejudique a fruição do espetáculo, apenas um pouco de preciosismo de uma criança grande metida a crítica teatral. A peça é mesmo imperdível. Tem o grande mérito de apresentar, de forma lúdica, a maior ferida que o ser-humano possui: a consciência da finitude, proporcionando aos pequenos um grande mergulho nas suas memórias e emoções. O fazer teatral, o interesse pelo outro e a nossa capacidade de criar e recriar histórias, são colocados como irresistíveis convites para reciclar as nossas dores e memórias, fontes inesgotáveis de matéria-prima.

Dedico esta resenha às minhas despedidas mais recentes, que este espetáculo ajudou a continuar superando: ao meu paizinho querido, que me deu tanto trabalho, mas deixou tantas saudades; e a garota que eu namorava, que foi embora para a cidade que nunca dorme para aprender a fazer brinquedos. Que sejam os melhores brinquedos… a nossa infinita capacidade de lembrar, de esquecer, de criar e de brincar.

*Revisão de texto: Amanda Leal.

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Eduardo Katz
Eduardo Katz é ator formado na Uni-Rio, defendeu título de Mestre com pesquisa sobre trabalho autoral do ator Pedro Cardoso. Já trabalhou em teatro com os diretores Amir Haddad, Michel Bercovitch, Moacir Chaves e Wolf Maya; em cinema com José Wilker, Ruy Guerra e Marcos Prado. Participou como ator em programas e comerciais de TV, com destaque para o personagem "Zingo" na série de humor "Adorável Psicose" no canal MultiShow. Trabalhou também como arte-educador no Museu da Vida da Fiocruz e no Museu da Casa do Pontal. Leciona o teatro no Colégio Santo Agostinho no Rio de Janeiro.

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