CRIMES GOZOZOS

Indícios de Autoria - Ator Criador

Apesar da vilania endêmica do cotidiano que repelimos publicamente, tendemos a desejar o cruento. Constrangidos e em segredo, mas o desejamos; quase sempre, na melhor representação deste maligno prazer: o crime.

Ápice da antihumanidade, este ato corrompe a opção histórica que fizemos pelo Estado como o único detentor do monopólio da violência. Ao passo que legitimamos sua força exclusiva para constranger quem avança para a bestialidade, também queremos desafiá-lo e, da intimidade do cidadão de bem, transpor as regras da urbanidade para matar, subtrair, violentar, agredir, ameaçar, induzir, ludibriar, constranger, portar, transportar.

Mas tolhidos pela ação civilizatória que nos impede de transformar este desejo em atos de execução, resta-nos implodir a repressão em placebos alegóricos chamados de “arte”. Pode-se dizer, com a segurança de trânsito em julgado, que não existe manifestação artística sem o crime, ou o que esperamos dele. Aponte-me uma obra, uma sequer, onde não encontramos, no mínimo, resquícios do Código Penal como uma das hipóteses dramatúrgicas do espetáculo, causas do enredo literário, camadas do verniz, ou motivo da narrativa, se não o principal, o indispensável.

Ocorre que dessa vontade doentia de errar nascem as mais hipócritas peças. Considerando a arte um produto voltado para seu principal consumidor/criador, o cidadão de bem criado no berço burguês, o conforto de sua história o protegeu do submundo do crime sua vida toda. Jamais pisou numa delegacia de polícia, e só conhece a violência das ruas através dos relatos que ouviu contar. Se um dia foi sua vítima, isso só agrava a torpeza de seu olhar sobre a experiência de quem também foi submetido à mesma situação. A sua dor de homem socialmente asséptico homogeniza a análise que lança sobre o outro, fazendo de si mesmo a medida humana para tudo o que lhe é diferente.

Para satisfazer a demanda do ilícito, o operador das artes finge desconhecer a inafastável política que sustentou seus antepassados, responsável pela manutenção da realidade criminosa que tanto evita e quer, criando para si um mundo próprio de heróis incorruptos e antagonistas rasos, superficiais, sem nascimento, DNA, vida pregressa. Basta o crime, não o ser humano que o cometeu, tampouco o sistema que o criou. A periferia torna-se uma intraduzível massa de pobres, não-cidadãos incapazes de se empenharem o suficiente na vida para se tornarem protagonistas, servindo apenas como coadjuvantes. Não temos literatura policial no Brasil. Há, apenas, uma manifestação de recíproco ódio social estruturado em histórias contadas pelos descendentes ideológicos do feitor. Preferimos o detetive particular ao policial mau pago, o homem corrupto por causa do governado em quem votamos.

Queremos o crime. Desde que não sejamos o responsável por ele.

Roger Franchini
Roger Franchini é escritor, autor dos livros 'Ponto Quarenta', "Toupeira - a história do assalto ao Banco Central', 'Richthofen - o assassinato dos pais de Suzane', 'Amor Esquartejado' e 'Matar Alguém".

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