Você precisa conhecer Baquaqua

Se você pensa que a palavra Baquaqua é uma onomatopeia, não se sinta sozinho. Você certamente estará junto aos mais de duzentos milhões de brasileiros que não saberão que se trata do sobrenome de um africano escravizado que chegou ao Brasil na primeira metade do século XIX e depois passou por vários países, com uma jornada de vida ainda pouco conhecida por nossa nação. É graças a uma biografia escrita por um pastor estadunidense há mais de um século e ao trabalho que a Companhia do Pássaro – Voo e Teatro está realizando com o espetáculo Baquaqua: documento dramático extraordinário, baseado nesta biografia, que este personagem fascinante começa a ser revelado para o nosso país.

O mulçumano Mahommah Gardo Baquaqua nasceu no território que hoje conhecemos pelo nome de Benin antes da arbitrária divisão territorial africana imposta pelos invasores europeus àquele continente. Baquaqua chegou ao estado de Pernambuco, importante entreposto para a escravidão mercantil da época, em 1845 e dois anos depois já estava trabalhando no Rio Grande do Sul. Depois foi para Nova York, Haiti, Detroit, Canadá e finalmente Inglaterra.

Dois são os trunfos da peça. O primeiro é relacionar a escravidão mercantil do passado com o racismo imperante presente em nossa sociedade e manifestado nas mais diferentes formas como comentários nas redes sociais, violência contra jovens negros ou discriminação no momento de empregar alguém, por exemplo. Infelizmente a lista pode ser longa e é, sem dúvida, reflexo da situação imposta aos milhões de africanos raptados da sua terra mãe e também do fato de países formados sob o peso da escravidão como o Brasil e os Estados Unidos nunca terem lidado seriamente com esta mancha histórica.

O outro trunfo é não cair na dualidade do tipo “Baquaqua é bom e os outros são maus,” pois a vida é sempre um pouco mais complexa do que desejamos. Seu alcoolismo é mencionado e a sua experiência ao chegar no Haiti, a primeira nação da Américas a abolir a escravidão e onde os negros estavam no poder há décadas, levou-o a decepcionar-se com as desigualdades nas relações de classe na sociedade haitiana de então. Dois fatos que ganharam destaque na peça demonstrando a complexidade das relações sociais.

Contar a vida de uma pessoa com tamanha jornada como Baquaqua em cerca de 1 hora não é tarefa fácil. Claro que é preciso selecionar o que se julga mais importante passar para o público e ao mesmo tempo não deixar o espetáculo lento. Nas escolhas, sempre haverá perdas. Por exemplo, a paixão correspondida de Baquaqua pela cunhada branca do pastor é levemente citada. Porém, foi este acontecimento que fez com que ele fugisse para o Canadá para escapar da morte aos que ousassem uma relação inter-racial nos Estados Unidos de então. Um episódio que poderia ser melhor explorado na peça.

A Cia. do Pássaro criou um espetáculo onde a agilidade está presente em cada cena com um cenário onde os objetos cênicos tem fácil adaptação para cada uma delas e adequam-se ao pequeno espaço onde é apresentado. O texto tem humor e uma linguagem de fácil entendimento sem cair no lado raso da língua. O fio condutor da dramaturgia é o mar, este ente que testemunhou a travessia sem volta de milhões de pessoas para terras distantes e que levou Baquaqua a tantos lugares do nosso continente.

Sem dúvida alguma, a Cia. do Pássaro cumpre com esta peça algumas das funções a que o teatro se propõe como emocionar, educar e divertir.

Não deixe de conhecer Baquaqua.

Ficha Técnica:

Dramaturgia: Dione Carolos e Dawton Abranches | Direção: Dawton Abranches | Elenco: Alessandro Marba e Breno da Matta

Serviço

Baquaqua: documento dramático extraordinário
Onde: Cia do Pássaro – Voo e Teatro – Rua Álvaro de Carvalho, 177 (Próximo ao Metrô Anhangabaú.
Quando: Todos os sábados de outubro ás 21 hs
Quanto: 10 Reais (inteira) 5 Reais (meia)

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Flávio José Rocha trabalha com Teatro do Oprimido desde de 2005 e é um apaixonado por todas as formas do fazer teatral. É também doutorando em Ciências Sociais na PUC-SP e pesquisa temas relacionados à questão socioambiental.

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