A experiência viva do espectador

Como um fazedor e apreciador das artes cênicas, mesmo em estado de férias, não há conforto melhor do que a poltrona de um teatro e o mês de julho em São Paulo foi dos melhores.

Começo pela primorosa dramaturgia de Paulo Santoro, um dos autores contemplados pela II Mostra de dramaturgia em pequenos formatos cênicos do CCSP, que apresenta com seu O teste de Turing, uma ficção da qual podemos estar cada vez mais próximos. No espetáculo, um grupo de especialistas – um linguista, um programador e um matemático – são convidados por uma empresa de tecnologia para comprovar a existência de uma máquina capaz de simular completamente a consciência e o comportamento dos seres humanos. Qualquer informação além desta breve sinopse comprometerá a vivência do espectador, portanto, paro por aqui e me estendo um pouco mais sobre a encenação e a qualidade dramatúrgica. Evidentemente caminhamos para uma estrada onde o diálogo com a tecnologia avançada será um princípio, o que em base é muito triste, levando em consideração que já adotamos um modo de vida preso a sistemas e programas que nos dizem por que caminho é melhor seguir, quantas flexões devemos fazer ou que par romântico nos é melhor indicado. Já há um império digital que nos rege e ainda assim acreditamos que possuímos o livre arbítrio por nossas ações cotidianas. Somos observados em diversos locais por onde passamos, somos marcados em fotos e vídeos que nem mesmo nos recordamos, a timeline do facebook nos relembra o passado com fotos e escritos que por algum motivo não nos pertencem mais, mas que tem como função recobrar nosso sistema interno. Nos tornamos máquinas, dependentes de tecnologia e no atual momento cobramos mais, exigimos dela uma precisão sem fim, a melhor resolução de fotografia; a melhor transmissão de vídeo; o impecável. Assim, não vejo O teste de Turing como uma ficção científica, mas um caminho cada vez mais próximo da realidade.

O espetáculo, com direção de Eric Lenate, cria um ambiente onde não situamos uma data precisa, mas que entendemos como um futuro presente, não tão distante, nem tão próximo. Há uma familiaridade neste ambiente, que motiva o espectador a se mover para frente para saber o que acontecerá em seguida. O enredo apresenta o famoso teste de Turing, formulado por Alan Turing, que num artigo em 1950, se perguntou “As máquinas podem pensar?”, questão essa que gerou uma repercussão inevitável no campo da ciência e da tecnologia, provocando também outras áreas como a das humanidades. Na peça vemos esse conflito entre as ciências exatas e humanas, sobretudo, porque coloca as emoções num lugar onde inevitavelmente poderão ser fabricadas, como indica a proposição do autor. Além do argumento muito bem articulado e instigante proposto por Santoro, destaca-se o elenco formado por Jorge Emil, Felipe Ramos, Rodrigo Fregnan e a precisa Maria Manoella, os dois últimos valem uma atenção especial, num diálogo voraz sobre o significado da razão e emoção humanas.

Por fim, um agradecimento especial ao CCSP pela iniciativa, que além de promover a nova dramaturgia brasileira, presenteia o público com edições de bolso da dramaturgia que apreciaremos em seguida. A mostra continua no próximo mês com Os arqueólogos, de Vinícius Calderoni.

Do Rio de Janeiro vem Mamãe, criação do a(u)tor Álamo Facó, que divide a direção com Cesar Augusto, para narrar o aflitivo final de vida da personagem Marta, uma projeção da mãe de Álamo, que sofreu um tumor cerebral que a levou a óbito, cem dias após o seu diagnóstico. No solo, vemos um fluxo de relatos que permeiam entre o vivido pelo intérprete ao lado de sua mãe e imagens que de maneira abstrata e (in)consciente transportam o espectador para um ambiente incômodo, onde não vivemos o real, mas aprendemos a coletar fatos da vivência entre esse filho e essa mãe, que do não-diálogo entre os dois no período em que a mesma esteve em coma, conhecemos reflexos do que fora Marta e da adolescência e entrega para uma vida ao teatro por seu filho Lázaro, o alter ego de Álamo no espetáculo. O tempo todo somos colocados no lugar de ouvintes de uma história que poderia passar como um simples e emotivo relato do amor de um filho por sua mãe, no entanto, o impacto vem pela negligência médica no tratamento, pela série de equívocos e burocracias que atrasam um olhar mais humanizado ao paciente. Ao final do espetáculo, sentimo-nos como parte daquela vivência em morte, o tempo todo estamos lá, Lázaro/Álamo faz questão de nos colocar como participantes, convidando a propor músicas para a mãe em coma e celebrar a vida que se vai. Mamãe foi premiado em 2015 pelo prêmio Questão de Crítica e indicado ao prêmio APTR por melhor autoria, sucesso esse registrado pela humanidade com o que o a(u)tor trata sua história, oferecendo ao público a oportunidade de adentrar numa casa que também lhes pertence.

Fluxorama é o novo texto de Jô Bilac, com direção de Monique Gardenberg, um espetáculo que apresenta quatro solos onde o foco está na ação de pensar e como isso se reverbera enquanto fala numa narrativa que poderia ganhar característica de não linearidade, no entanto, o modo como nossa mente constrói argumentos é diverso e recheado por mapas dos quais nem sempre podemos acessar. Como seria falar ininterruptamente tudo o que nos vêm à mente, sem medo do porvir, sem nenhum tipo de responsabilidade pelo estar? O conflito entre o que se é – a personagem que se apresenta – e o que se faz geram um impacto grandioso na ação de pensar, que reina em absoluto nos solos onde cada um se encontra isolado diante de si mesmo. O conceito de uma cenografia em projeção de Daniela Thomas e Felipe Tassara, aliado com a música original do formidável Philip Glass acentuam uma direção visceral para onde dramaturgia e elenco caminham de mãos atadas, em busca de um limite para a razão, um limite para os estados incompreensíveis do que pertence ao humano.

Realizando essa passagem entre os três espetáculos aqui abordados, percebo que há uma linha comum que os une, que é o desejo irrefreável de se apegar à vida, que por tantos momentos nos escapa, a julgamos desnecessariamente e perdemos oportunidades, passando a ser colecionadores de momentos e não de vivências.

Para encerrar o mês, deixo o relato apaixonado por Sankai Juku, companhia japonesa de Butô, que esteve recentemente no Teatro Alfa com o espetáculo Meguri. Mesmo após a sequência impressionante de bailarinos que eram de fato a natureza viva no palco, o que me comoveu fortemente foi o agradecimento final, que, apesar de coreografado, continha uma maestria e uma gratidão que jamais havia presenciado. O gesto de agradecimento desses artistas ao público me transportou imediatamente como o que imagino de um santo diante de uma graça sendo alcançada. Esse sentimento vivo do teatro jamais poderá ser substituído por qualquer forma inovada de tecnologia.

Serviço:

O teste de Turing
Onde: CCSP – Sala Jardel Filho
Rua Vergueiro, 1000, Paraíso / Metrô Vergueiro/ Tel: 11 3397 4002
Quando: Até 07/08. Sextas e sábados, às 21h; domingos às 20h
Quanto: R$10 / 321 lugares / Possui acesso para deficiente.
Classificação: 14 anos / Duração: 60 minutos

Mamãe
Onde: Sesc Pinheiros – Auditório 3º Andar
R. Paes Leme, 195 – Pinheiros / Metrô Faria Lima / Tel: 11 3095 9400
Quando: Até 06/08. Quinta a sábado, às 20h30
Quanto: R$ 7,50 a R$ 25 / 98 lugares / Possui acesso para deficiente.
Classificação: 14 anos / Duração: 70 minutos

Fluxorama
Onde: Sesc Ipiranga
R. Bom Pastor, 822 – Ipiranga / Metrô Sacomã / Tel: 11 3340 2000
Quando: Até 21/08. Quintas e sextas, às 21h; sábados, às 19h e 21h; domingos, às 18h
Quanto: R$ 12 a R$ 40 / 200 lugares / Possui acesso para deficiente.
Classificação: 14 anos / Duração: 80 minutos

Rafael Carvalho
Rafael Carvalho é ator, diretor, dramaturgo e arte-educador. Formado pela Universidade Federal de Ouro Preto nas habilitações de Licenciatura e Bacharelado em Direção Teatral. Integrou a 1ª Turma do Núcleo de Dramaturgia Sesi-SP/British Council. Autor das peças: "desFOCO" – publicado pela Editora Sesi-SP; "Ceci n'est pas une pipe {Este não É um cachimbo}" – com o grupo Transitório 35; "[A Cidade do Entre]" – com o Coletivo Onírico de Teatro (Campinas/SP); entre outras. Com o monólogo "MCNA - Meu Corpo Noite Adentro", foi premiado nas áreas de interpretação e dramaturgia. Atualmente é professor no Curso Profissional de Ator do Teatro Escola Macunaíma (São Paulo) e escreve para a coluna "Recortes de Cena" do site Ator Criador.

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